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sexta-feira, 27 de março de 2015

Arremeteu!




Roberto Damatta


Quando pousávamos em Congonhas e eu, mesmo entretido na conversa com meus companheiros de ponte aérea, via o paliteiro de concreto dos edifícios de São Paulo, ouvimos o barulho do baque do trem de aterrissagem no asfalto duro da pista, percebemos que o chão não era mais o nosso porto seguro e sentimos o arremesso. Tão grande foi o choque que o avião estremeceu. A conversa rotineira acabou quando pusemos as mãos abertas no assento da frente como um inútil artifício de frear a maquina que voltava ao céu.

Eu olhei para os meus companheiros de 50 minutos de proximidade feita de conversas ligeiras que tentam diminuir a distância de idade, gênero e gostos e percebi que eles poderiam ser meus irmãos na eternidade da morte e de uma burocrática lista alfabética de passageiros a ser atinada com meneios de cabeça, sentimentos de pena e, quem sabe, de alguma alegria, para logo depois ser esquecida pelo cafezinho, pelas compras e preocupações, pela merda em que o PT meteu o País, pela plenitude irrecusável dos gozos da existência, e disse:

- Vocês viram aquele filme do Denzel Washington que ele é um piloto bêbado e aterrissa o avião de cabeça pra baixo?

Rimos amarelos porque sabíamos que aquilo não era um filme que podíamos deixar de assistir. A arremetida real e indiferente a qualquer motivo, impunha-se soberana. Pensei numa famosa Lei de Murphy: se uma coisa dá errado, espere outra...

*Imagine que na manhã daquela sexta-feira 13, eu havia lido o seguinte no livro A Montanha Mágica:

"A distinção! Vida ou Morte, enfermidade ou saúde, alma e natureza são contrárias? Pergunto: constituem problemas? Não! Não são problemas, e tampouco o é o tal problema da sua nobreza. A desrazão da morte provém da Vida e sem ela a Vida não seria vida (...).

O homem é dono das contradições que existem por seu intermédio e, por conseguinte, é mais nobre do que elas. Mais nobre que a morte, demasiado nobre para ela, e isso constitui a liberdade do seu cérebro. Mais nobre que a vida, demasiado nobre para ela, e isso constitui a piedade do seu coração. Eis que acabo de fazer um devaneio poético sobre o homem. Quero lembrar-me dele".

O meu devaneio foi: nada tenho a esconder ou a apagar. Que me perdoem os que eu ofendi, pois não desejo morrer pensando no ressentimento, mas na concórdia. Sei que os que me amam terão discernimento e calma para viver o meu fim.

*
Mas naquela situação entre nuvens, no sanduíche de terra e céu, eu vivia a ambiguidade funesta do pousar ou não pousar. Experimentava a suspensão do repetir normal que assegura quem somos. Diante do inusitado anormal não me veio à mente o trecho quase bíblico e profundamente antropológico de Thomas Mann, mas baixou em mim a consoladora poesia de Carlos Nejar:

"Entrarás na morte como se entra em casa, desvestindo a carne, pondo teus chinelos e pijama velhos.

Entrarás na morte limpo, sem escuros, sem punhais ocultos sob o teu orgulho.

Entrarás na morte como quem parte para uma viagem, não se sabe o norte, mas começa agora.

Entrarás na morte livre de remos e cuidados breves, como alguém que dorme na varanda enorme entrarás na morte".

Entraria na morte como um cidadão moderno, confortavelmente instalado numa poltrona, diante de uma pequena tela de televisão e de uma mesa retrátil, englobado por um enorme objeto voador belo e metálico? Uma máquina que é o meio mais inigualável de encurtar caminhos e, no caso, de diminuir o fosso entre este mundo e algum outro?

"Entrarás na morte como se entre em casa..."

A poesia virou prece. Morremos sem saber e, muitas vezes, não nos damos conta de nossa hora quando ela chega. Pensamos numa indigestão banal quando, na verdade, em vez da benfazeja febre que nos livra da enfermidade, morremos. Deixamos estupefatos os que nos amam pela simplicidade do adeus.

Quantos modos de morrer conhecemos? O único que escapa desta certeza cravada na vida é o suicídio ou a morte datada dos condenados que, como dizia Camus é - paradoxalmente - menos absurda e, no fundo, tranquila porque ela reverte todo o sistema pela raiz, já que não se sabe de uma cosmologia na qual, fora a velhice e os ritos sacrificiais, a morte seja datada.

Hoje, ao escrever essa experiência, cogito: será que o avião aterrissou e eu estou mesmo vivo?

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