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domingo, 22 de fevereiro de 2015

Ainda há carnaval?


Roberto Damatta

Para Mônica Bergamo, Ricardo Boechat e Fernando Mitre que trouxeram de volta o assunto.

"Acho que vocês o enterram!" Assim falou meu velho amigo Richard Moneygrand nesta última "terça-feira gorda". O famoso brasilianista de primeira hora dissertava que o "velho mardi gras" era uma festa em extinção no Brasil.

De onde você tirou essa ideia? Questionei o amigo que estava no Rio sem a esposa, tomando um drinque na pérgola do Copacabana Palace, enquanto esperava Daiene - uma bela morena de olhos verdes que se preparava para fazer uma sauna "a fim de estar renovada para se esbaldar à noite".

Eu olhava assombrado, enquanto Dick, com seus 80 e tantos anos, sorria o seu meio sorriso ianque malandro enquanto dizia, batendo no meu braço: "Brincar carnaval com a esposa (no meu caso, a sétima ou a nona, não me lembro mais - who cares?) é, como você mesmo me ensinou - remember? -, levar um sanduíche de mortadela para um banquete".

"Caro amigo - continuou - nos seus estudos pioneiros do carnaval, você tem uma tese forte: o carnaval seria um ritual - uma cena fixada para ser repetida - dinamizado pela igualdade substantiva de todos perante todos; e não pelo igualitarismo político burguês ou liberal de todos perante a lei. Trata-se de uma festa em que a ênfase no corpo mascarado, nu ou fantasiado dos participantes desnuda, num desabafo, um sistema hierarquizado, aristocrático e legalisticamente autoritário. Uma sociedade familística e alérgica a qualquer forma de equidade, precisa de um suspiro de igualdade e individualismo. O ideal carnavalesco de ter uma licença limitada para 'fazer tudo' até mesmo competir, só ganha essa força porque vocês, sendo católicos, marcam com o excesso os últimos dias do advento, o qual vai se abrir para a Quaresma e para a Semana Santa. O nascimento do Cristo, por contraste com a sua paixão e ressurreição, são dinamizados pela igualdade festiva da carne e pelas cinzas humildes da disciplina dos tempos em que os santos se cobrem de roxo. Antes, porém, de abandonar (levar no velho latim) a carne (cerne-vale); permite-se a bagunça de exagerar o seu uso. Antes do luto cinzento, o mel brilhante viscoso e ardente da carne.

Hierarquia, subordinação, obediência, escravidão e trabalho como castigo somem. A aversão absoluta à igualdade da rotina é subvertida pelo direito de não trabalhar e pela permissão ritualizada para agredir simbolicamente os outros. Sobretudo os superiores, com desfiles surrealistas e, antigamente, com bolas de cera cheias de líquido perfumado, água ou urina. Esse era o barato do carnaval. Até o imperador Pedro II foi atingido e seus puxa-sacos, mais onipresentes que o próprio entrudo, aconselharam-no a não ir à rua naquele período.

Mas mesmo em casa, lembrou Moneygrand, vocês fabricavam uma batalha simulada contra parentes, criados e vizinhos. Em suma, a sociedade via o outro como igual ou um afim - como um fornecedor de mulheres, amantes e namoradas, daí a razão de não se levar a esposa para uma festa e de 'soltar' as próprias irmãs, igualmente livres no pacto geral de 'esquecer' as normas da cortesia e do cada qual no seu lugar! A 'feminização do mundo' que coliga, como você disse num livro, substituía a obrigatória sisudez masculina que separa. 

Lembro uma história. Uma namorada diz a um apaixonado a regra básica do carnaval: brincar separado! O rapazinho burguês, não queria entender o prenúncio do fim de uma lealdade casmurra, esperada pelos homens de suas mulheres e imediatamente percebeu que o ter direito a 'estar separado' era uma norma a ser igualmente desfrutada pelas mulheres. Use ao menos uma máscara! Retruca o jovem, assim você pode ser vista como uma outra pessoa, sem correr o risco de você mesma. 

Se o centro do carnaval era celebrar abertamente a malandragem e a esbornia do igualitário, relativizando o luxo dos aristocratas e o poder de impunidade dos poderosos, teria isso algum valor festivo no Brasil de hoje?

Atualmente, falou o velho brasilianista um tanto sério, ocorre um escândalo carnavalesco todos os dias. O governo, mascarado, mente carnavalescamente. Acabou-se o riso alegre dos papéis invertidos. Hoje, o guardião dos recursos públicos é o primeiro a roubá-los. O dinheiro do povo é posto aos bilhões em bancos estrangeiros. Virou uma rotina a afinidade predatória do Estado para com a sociedade. Se não há mais ordem, como - pergunto eu - viver uma festa da desordem? O carnaval tornou-se banal, medíocre, trivial e diário. 

Se o escândalo público e a ausência de punição é trivial, se os criminosos tornam-se heróis e, no máximo, transformam-se em máscaras carnavalescas, eu questiono: ainda há carnaval?"

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