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quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Adoção



Roberto Damatta - O Estado de S.Paulo

"Eu quero mesmo é ser adotado." Essa foi a frase de despedida de um amigo muito amado. Eu sabia do seu drama. Envolvera-se com uma mulher que, depois de amá-lo, maltratava-o; tudo agravado por um filho adotivo mentalmente perturbado, com o qual não se preocupou. A culpa era dele, era dela, era do mundo em que vivemos. Todos estamos envolvidos e alienados - ou você, leitor, tem alguma dúvida? - em tudo. Enxergamos com microscópio o que ocorre com o irmão e, no entanto, somos impotentes para mudar o seu malogrado destino.
Dessa tragédia anunciada - aliás, o que não é anunciado neste nosso mundo onde o fim é a única certeza, como elaborou García Márquez num livro extraordinário? - ficou na minha mente a adoção como projeto.
Ser adotado é um gigantesco anseio que todos temos, mas poucos manifestam. Num nível profundo, a adoção como o internamento, a filiação a um partido, a crença absoluta ou a prisão domiciliar - esse privilégio nacional - traz o benefício de não se preocupar mais com a dureza de tomar decisões. Sobretudo da decisão paradoxal de não decidir, a qual só pode ser assumida de modo legítimo quando se decide.
Regimes escravocratas têm como base a adoção involuntária definitiva de uma pessoa (o escravo) por outra (o senhor), a qual incorporava o adotado na sua pessoa jurídica, tirando-lhe a representatividade e fazendo cair sobre ela todos os deveres, sobretudo o de trabalhar - esse ato que, no Brasil, até hoje promove alergias e designa inferiores.
Uma adoção completa, arrasa a liberdade e a responsabilidade, como é o caso dos menores. Uma criança, embora tendo direitos inalienáveis, não decide por si mesma nem deve fazê-lo, sob pena de irresponsabilidade dos pais.
Lembro-me de um caso assombroso. Numa família de seis filhos (duas meninas e quatro meninos) ocorreu uma manifestação. Os filhos queriam alterar a rotina da casa por meio do voto direto e secreto. Do lado dos filhos, autodenominados de "povo" e "manifestantes" estavam os amigos de colégio e um jovem tio; do lado dos pais, lidos como "opressores" e "autoridades", havia avós dilacerados e pelo menos um juiz de direito aposentado, amigo da casa. A proposta dos rebentos era de tomar sorvete todo dia; dormir depois da meia-noite e, eis o ponto-chave, terem o direito de beber e fumar tanto quanto o pai. Surgiu também a proposta de jamais tomar banho frio e um dos meninos anonimamente propôs a prerrogativa de comer a atraente empregada, o que deixou o pai furioso.
A eleição deu ganho de causa aos filhos por seis a dois! Um embargo e uma "questão de ordem" impediram a empregada de votar. Uma das filhas, cuja bandeira era chegar em casa mais tarde do que os irmãos, argumentou que o direito ao voto só caberia aos membros da família. O filho caçula, surfista e louco pela doméstica e pelo direito de fumar baseados a seu bel-prazer, invocou um outro embargo preliminar; o qual foi seguido de um outro embargo e, no final, a mãe queria anular o processo reclamando da forma da urna.
A discussão evoluiu para o berro e o pai, num surto de impaciência e - reza o caso - de bom senso, pegou um cinturão e acabou com que chamou de "palhaçada parlamentar familística", porque voto não era para a casa. "Quando vocês puderem se sustentar, seus putinhos - disse ele, furibundo -, vocês vão poder fumar e beber à vontade!"
O caso joga luz no valor das rotinas. Se temos polaridades (homens e mulheres, velhos e jovens, crianças e adultos, animais e humanos, etc...), temos também um conjunto de intermediários. A dificuldade de decidir surge precisamente porque as diferenças promovem múltiplas perspectivas. Ademais, há, dentro de cada um de nós, um infante querendo votar e um adulto cansado de fazê-lo.
O problema não é bem querer ser adotado, é impedir a adoção. Pois todos nós somos inescapavelmente adotados por alguma entidade - uma língua, uma ideologia, um momento histórico e uma coletividade, por exemplo. É impossível escapar da adoção porque ninguém entra nesse teatro de horrores escolhendo livremente todos os seus papéis. Do mesmo modo, é impossível gozar da liberdade absoluta a qual, como advertia a antropóloga Margaret Mead, torna inviável um mundo sem rotinas. De fato, um sistema no qual todas as decisões seriam tomadas em assembleias e manifestações, seria imobilizado pelas próprias regras. Uma consciência absoluta leva à paralisia.
Como disse muito bem o antropólogo Roberto Kant de Lima, quando um pequeno grupo impede uma multidão de ir e vir, o direito de manifestação tem que se entender com o direito de ir e vir o qual, por sua vez, também tem que se haver com outros direitos... O que não é fácil num país no qual os poderosos sempre tomam as decisões.
Na minha opinião (que não resolve nada), seria preciso retomar aquele bom senso primordial do dar, receber e retribuir que Marcel Mauss ensinou e que nós, ignorantes, mas estufados na nossa santa arrogância individualista, esquecemos.

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