José
Nêumanne
Ter acesso a
Supremo como instância única é, na prática, melhor meio de ter defesa
ilimitada
Na teoria, os
seis ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) que votaram pela aceitação dos
embargos infringentes dos condenados do mensalão que tiveram quatro votos contra
a sentença majoritária se inspiraram na mais nobre das intenções, a de garantir
plena defesa a réus julgados não em última, mas em única instância. Os
ex-dirigentes do Partido dos Trabalhadores (PT) e no primeiro governo federal
deste José Dirceu, José Genoino e João Paulo Cunha, entre outros, foram
beneficiados por um princípio jurídico cuja definição – “garantismo” – não
consta do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Mas tem sido tão usado
em discursos no mais alto tribunal que pode até ter entrado no pequeno universo
vocabular da grande massa da população. No “juridiquês”, o termo pomposo
significa direito à defesa total. No popular, empurrão com a barriga ou
impunidade.
A reportagem de
Valmir Hupsel Filho e Fausto Macedo na edição de domingo (22 de setembro) deste
jornal não deixa dúvida quanto a isso. Pelas contas dos repórteres, “chance de
novo julgamento no STF pode adiar sentença de mais 306 ações penais”. Ou seja, a
oportunidade dada por seis em 11 ministros supremos aos petralhas-em-chefe, num
processo que dura mais de sete anos para julgar delitos de que são acusados há
mais de oito, esticará a delonga notória de que gozam réus em 306 ações penais e
533 inquéritos criminais, alguns dos quais se tornarão ações desde que as
denúncias sejam aceitas pela Corte.
Entre estes há
ex-inimigos do PT convertidos à grei dos comensais do poder socialista. De
acordo com o levantamento dos dois repórteres, o deputado federal Paulo Maluf
(PP-SP), que de acusado de “filhote da ditadura” passou a aliado fiel na
campanha vitoriosa de Fernando Haddad à Prefeitura paulistana, responde a duas
ações por crimes contra o sistema financeiro nacional. Numa delas, a 461, de
2007, também é acusado por formação de quadrilha, lavagem de dinheiro e
ocultação de bens.
Caso similar é o
de Fernando Collor de Mello, a quem a bancada petista negou até o direito de
renunciar para lhe impor a humilhação do impeachment, interrompendo mandato que
ganhou nas urnas contra o principal líder dela, Luiz Inácio Lula da Silva. De
volta à política como senador de Alagoas pelo PTB, depois de absolvido por
inépcia da denúncia que o defenestrou do cargo máximo do Poder Executivo,
pertence à base de apoio, na qual tem prestado relevantes serviços ao governo do
PT, PMDB e outros aliados. Ele é réu em duas ações desde 2007: numa é acusado
por cinco crimes, entre os quais corrupção passiva e ativa, e em outra, por
delitos contra a ordem tributária.
Outro
beneficiário da decisão da maioria do plenário do STF é o maior partido da
oposição ao governo a que Maluf e Collor dão apoio parlamentar – o Partido da
Social Democracia Brasileira (PSDB). Desde 2009 o deputado federal Eduardo
Azeredo (MG) responde à Ação Penal 536 pelos crimes de peculato, lavagem de
dinheiro e ocultação de bens e valores. O caso é conhecido como “mensalão
mineiro” e inspira o mantra com que os petistas cobram tratamento igualitário da
Justiça.
Pois é
exatamente de tratamento desigual que se trata. Dirceu, Genoino, João Paulo,
Maluf, Collor e Azeredo, entre tantos outros, gozam de dois privilégios negados
aos lambões de caçarola das periferias metropolitanas e aos mutuários do Bolsa
Família nos sertões. O primeiro é o acesso à última instância do Judiciário,
reservada para quem possa pagar – ou quem tenha amigos dispostos a fazê-lo – os
advogados mais caros. Outro, ainda mais incomum, é o da instância única.
Mandatários do governo e da oposição são poupados dos contratempos dos
julgamentos em baixas instâncias da Justiça pelo chamado “foro privilegiado” e
respondem direto à Corte máxima do Judiciário.
Não foi, então,
por coincidência que a sexta e decisiva adesão ao recebimento dos embargos – e é
bom que se diga que há fundamento jurídico para qualquer decisão que ele tomasse
– tenha sido feita pelo decano Celso de Mello, autor do mais candente voto
contra a compra de apoio político no julgamento propriamente dito. O infecto
sistema prisional brasileiro, de que reclama o ministro petista da Justiça, José
Eduardo Martins Cardozo, o causídico casuísta, é um inferno onde só entram os
velhos três pês de sempre: pobres, pretos e prostitutas. Clientes de clubes,
alfaiates e restaurantes frequentados por maiorais do Poder republicano que
julga são poupados de dissabores como o cumprimento de pena em insalubre prisão
fechada.
Sem ser injusto
com o decano – cinco pares votaram com ele –, mas apenas para aproveitar a
oportunosa ensancha da citação com que abriu seu voto de desempate (e não de
Minerva, pois a deusa romana, coitada, nada tem que ver com isso), o patrono dos
majoritários na decisão foi trazido a lume por ele. Poderia ter sido o udenista
(condição política execrada pelos réus beneficiários) Adaucto Lúcio Cardoso, que
preferiu abdicar da toga a submeter-se à arbitrariedade da ditadura militar que
chegou a apoiar. Mas foi José Linhares, o presidente do Supremo que passou à
História por ter sido alçado à chefia do Executivo pelos militares nos 93 dias
entre a queda do Estado Novo e a posse do primeiro presidente que governou sob a
Constituição de 1946. E que ganhou a jocosa alcunha de Zé Milhares, dada pelo
populacho que não tem acesso ao Supremo por causa da profícua nomeação de
parentes, pela qual sua curta e medíocre gestão se tornou
notória.
Parece lógico
ter-se o voto decisivo pela aceitação dos embargos inspirado no juiz que
simboliza o nepotismo nesta República em que nomear parentes para o serviço
público é uma das piores pragas. Não tem esse vício DNA idêntico ao da
impunidade de poucos no império da lei para todos?
Jornalista,
poeta e escritor
(Publicado na
Pag.2ª do Estado de S. Paulo da quarta 25 de setembro de 2013)
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