Renata Zancan*
(N.do E.: res significa coisa em latim)
Caminhamos
a passos infantis numa democracia que antes mesmo de andar com suas próprias
pernas, já se apoia na bengala signatária do despotismo.
Se
ontem ditadura militar, hoje fundamentalismo religioso.
Esse,
representado nas tribunas por legisladores cuja meta é fazer valer a hipocrisia
avassaladora do discurso moral caducista.
Fantasiados
de representantes do povo prometem curar e banir do outro aquilo que lhe é
legítimo: o desejo. Sentados em seus tronos quadrienais pensam como o Deus do
antigo testamento, que lavou com as águas do dilúvio tudo aquilo que não era
desejo seu.
Esquecidos, porém, estão esses senhores e senhoras que Deus jamais foi eleito por voto
popular; já estava lá, imposto, e esses tais senhores e senhoras somente
postos.
Não
basta comemorarmos o aniversário da Lei Maria da Penha, se o Estado pela voz de
seus legítimos representantes agride, viola a mulher em sua alma e corpo,
imputando a ela a pena pelo crime do outro.
A
proibição ao aborto, à lei do nascituro, a “bolsa estupro”, estão longe de
proteger a mulher e a criança, ou mesmo atribuir-lhes dignidade, pois imputam-lhe a
condição de subsumidos ao Pai-Estado.
Leis
que atestam o “não vir a ser” mulher-sujeito, senhora de seu corpo, de seu
desejo, mas a condição de “res” de um Estado que legisla sobre ela: a “res”, tal
quais os senhores escravocratas legislavam sobre suas escravas.
Momento
irônico este, pois se temos como chefe maior da nação uma mulher que faz questão
de nomear e assinar seu cargo de presidente com a letra “a”, essa mesma mulher
deixa marcar, com seus braços cruzados, e a voz calada, a letra da lei na carne
e na existência de uma outra mulher a menor valia dessa diante do nome do Pai-
Estado.
A
lei da proibição do aborto, a lei do nascituro, não interferem só no desejo da
mulher, abrem caminho a mortes e abandonos muito além da realidade atual. Leis
violadoras da vida, da saúde e do bem estar.
Condenar
a mulher vítima do estupro a gestar e parir a criança fruto da violência não é
transformar vítima em criminoso? Não é fazer da cura o envenenamento?
E
como dar ao criminoso o status de pai, se por ato seu num “a priori” já está
desqualificado como tal.
Será
que acreditam mesmo esses senhores e senhoras legisladores que um Estado que
transforma em invisíveis os filhos que já tem e interna compulsoriamente outros
tantos que maculam sua imagem ou oneram seus cofres, haverá de salvaguardar a
integridade e dignidade daqueles vitimados que estarão por vir?
Uma
criança só existe como tal a partir do investimento paterno-materno muito antes
de seu nascimento; do contrário existirá somente como um pedaço de carne. E o
que será feito daqueles que serão dados como tal às expensas do Estado?
Serão a
“res” da “res”?
E
o que se propõe então é uma volta ao império quando os filhos bastardos eram
criados nas senzalas? Mas se as senzalas não existem mais, construiremos outras às expensas do Estado, ou será criado o imposto para garantia da prática da
perversão?
*Psicanalista
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