Afinal de contas, eis uma indagação que nos faz humanos:
as coisas mudam mesmo ou tudo muda, mas continua sendo sempre a mesma
coisa?
Quando um dos meus professores a colocou no início de um ano letivo
daquela inesquecível e justamente histórica década de 60, a resposta
estava decididamente do lado da transformação. Tudo muda sempre,
incessantemente. A inclinação da própria vida para a alteração é tão
forte que o melhor seria situar-se revolucionariamente ao seu lado, pois
a ela reagir é remar contra a corrente da história. É imitar os
reacionários.
Naquele momento, instalou-se em mim a ideia do reacionarismo como um
pecado mortal e um valor negativo. É óbvio que abracei a mudança e, mais
que isso, a transformação total das "estruturas", conforme se dizia
naquele tempo. Tudo era claro como água.
Tempos depois, alarmado com os erros da dinâmica histórica brasileira
que, lamentavelmente, teimava em não seguir as etapas históricas
esperadas pela teoria, eu repensei a relação entre mudança e
permanência. Entre rotinas e aventuras. E mais complicado ainda, entrei
no problema das repetições e dos retornos que faziam parte da vida das
sociedades (o Brasil havia vivido uma ditadura nos anos 30 e vivia outra
nos anos 60) e da minha própria existência (eu adorava fumar).
Repetições, digo logo, que muitas vezes se faziam sem autorização da
minha consciência ou de algum controle manifesto. Pior que isso, porém,
foi aprender com Lévi-Strauss que algumas sociedades mudavam, mas
escolhiam permanecer fiéis a si mesmas.
Como perceber a mudança sem pensar numa tradição? E como mudar uma
tradição quando ela existe justamente para evitar escolhas que roubam o
repouso: o fazer "naturalmente" - sem sentir e sem preocupações? Essa
inércia instalada que, como um carro, continua em movimento mesmo depois
de devidamente brecado?
Numa bendita e insone madrugada, deparei com a seguinte meditação
de sir Matthew Hale, jurista inglês do século 17: "O navio" - escreveu -
"empreendeu uma viagem tão demorada que ao final, cada uma de suas
partes havia apodrecido, tendo sido substituída por outra. Todavia, numa
acepção significativa, continuou sendo o mesmo navio".
* * * *
Esse pequeno texto me fez repensar a repetição. Ela não seria apenas
uma farsa, mas um castigo. Todos nós retornamos e repetimos, mas nem
todas as nossas repetições são retornos indesejáveis. Como divorciar-se
para casar sempre com a mesma pessoa. Ou a recusa em colocar-se, ainda
que seja por alguns segundos, no lugar do outro.
Inúmeras partes do nosso corpo mudam completamente na grande viagem
da vida, mas permanecemos a mesma pessoa, tal como o navio de sir
Matthew Hale. O problema não é brecar a mudança. É saber onde ela é
inevitável e onde ela tem que ocorrer sob pena de fazer o navio virar
uma canoa.
* * * *
Um dos maiores mistérios da vida social não decorre do fato de termos
consciência dos problemas, mas de sermos incapazes de solucioná-los. No
caso do Brasil, é mais do que claro que hoje vivemos uma crise de
defasagem entre práticas rotineiras no plano da vida social e econômica e
de atitudes absurdas no plano político e legal. A inconsistência que
não havia numa sociedade de senhores que tudo podiam fazer, e que viviam
na base do "dou para receber", chegou ao seu limite neste Brasil de
moeda estável, de economia de mercado e de uma competitividade que
individualiza e demanda uma igualdade perante as leis e as
oportunidades. Esse igualitarismo com o qual o Estado (que se enxerga
como dono do Brasil) tem uma intensa alergia.
Tal conflito é recorrente dentro do nosso processo de mudança. O
Brasil avança, mas não conseguimos controlar (pensar em extinguir seria
utópico) o poder de uma elite do poder cuja dinâmica vai da canetada ao
de enriquecer e, por último, mas não menos importante, de tornar os seus
asseclas irresponsáveis perante a lei.
O caso Cachoeira prova esse afastamento intolerável. Como conseguir
controlar no plano pessoal, que é o nível mais óbvio da ética, o que é
bom para nós daquilo que é necessário e bom para o Brasil? Como
sublinhar o sentimento de limite entre cargos oficiais que, num regime
republicano, são incompatíveis com uma vida privada deles discordante?
Até onde um legalismo obviamente maquinado para proteger os poderosos
vai continuar sendo o ator principal dos nossos teatros processuais,
substituindo a ética e a verdade?
No "tu é nosso e nós é teu" ou coisa que o valha, lavra-se a lógica
do velho em contradição com o novo. Não se trata mais de fazer uma
mudança radical de "estruturas" ou de botar o Brasil de ponta cabeça
para o bem do povo. Não! O negócio deste Brasilzinho dos políticos de
hoje é grana. Uma fachada ideológica mal disfarça a boa vida como alvo
dos que chegam ao poder. Hoje vale tudo. Como bem disse o deputado Miro
Teixeira, trata-se de uma "tropa de cheque" para esconder o cheque da
tropa.
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