O Estado de S.Paulo
Lamento do fundo do meu coração a morte da ciclista
Juliana Dias, vítima da mal politizada e ainda não discutida barbárie do
trânsito brasileiro; ao mesmo tempo em que faço uma homenagem ao grande
cineasta e ator Vittorio De Sica usando o título do seu célebre filme,
realizado em 1948, que retrata uma Itália pós-guerra, vivendo um duro
cotidiano de reconstrução de sua sociedade, de sua vida política e do
seu sistema econômico, para escrever estas notas.
Para quem não sabe, lembra ou viu, o filme gira em torno de um
desempregado que consegue trabalho como colador de cartazes, com a
condição - por causa da mobilidade necessária ao serviço - de possuir
uma bicicleta! Parece familiar, não é verdade? Para tanto, sua mulher
empenha a roupa de cama da casa para obter a bicicleta, cujas frágeis
rodas e a força do seu dono e piloto são as asas da esperança do herói
do filme para a competição por um emprego na rua.
A história é contada no que se convencionou chamar de neorrealismo,
porque não era realizado num estúdio, não tinha o lirismo falso e fácil
de Hollywood nem lançava mão de atores famosos. Usando uma
cinematografia modesta, quase humilde, que inspirou o cinema novo de
Glauber Rocha, Carlos Diegues, Nelson Pereira do Santos e Joaquim Pedro
de Andrade, entre outros, De Sica conta como uma simples bicicleta -
esse objeto de esporte e lazer - muda de significado e passa a ser um
instrumento crítico de sobrevivência, de esperança e de recuperação da
honra pessoal. Essa honra cuja marca, para quem é obrigado a trabalhar
duro - como, aliás, é o meu caso -, tem como pano de fundo a fragilidade
e como centro o temor do desequilíbrio.
Exatamente como ocorre quando andamos de bicicleta sem usar as duas
mãos e podemos cair ou ser atropelados, pois toda bicicleta é um fator
de risco. Seja pelo requerido equilíbrio, seja pela presença dos
veículos motorizados, seja pela desesperada busca do ladrão, como ocorre
no filme. Eis uma belíssima metáfora da vida na qual todos somos meros
ladrões ou perdedores de bicicletas e nelas passamos desiquilibradamente
a nossa existência.
* * * *
Neste Brasil contemporâneo somos todos - como motoristas - especialistas em roubar a vida de pedestres e ciclistas.
De fato, no dia 2 de março, perdeu a vida em São Paulo a bióloga,
pesquisadora e cicloativista Juliana Dias, de 33 anos. Ao saber de sua
morte em plena rua - abraçada pela crua e nua impessoalidade que marca
as ruas de todas as grandes cidades, mas transforma em barbárie as deste
nosso gentil Brasil -, voltei a me perguntar se não era um conto do
vigário a publicidade realizada em torno do transporte de bicicleta num
contexto urbano, onde o trânsito é dominado por uma forma de
comportamento brutal e selvagemente agressivo.
Como andar de bicicleta em cidades nas quais motoristas têm como
esporte atropelar - pela ordem, pedestres, ciclistas e motociclistas,
esses últimos com plena legitimidade, os dois primeiros porque a rua não
lhes pertence? Todos, porém, porque são figuras menores numa visão
desigual do espaço público. Um espaço que é pessoalmente demarcado de
acordo com o tipo de veículo, a agenda do dono do carro, bem como as
suas circunstâncias de vida, de tal modo que ninguém deixa de ser -
exatamente como no filme de De Sica - um vil ladrão de bicicletas e das
vidas que as fazem funcionar. Pois, se os automóveis são movidos a
cavalo e dirigidos por déspotas, as bicicletas - até prova em contrário -
são tocadas por idealistas e ingênuos, esses inocentes que acreditam no
respeito às normas e aos outros.
Pergunto se não seria uma urgência urgentíssima fazer uma campanha
maciça, dura e realista, mostrando claramente a nossa resistência à
cordialidade que sem dúvida é nossa, mas que deve ultrapassar as
fronteiras da casa e do coração, para ser aplicada ao mundo da rua e a
todos os que conosco compartilham o espaço urbano. Tal extensão do
respeito pelo outro no mundo público chama-se igualdade! Esse valor a
ser implementado pela polícia e pela lei, mas ao lado de uma
conscientização de nossas alergias às situações igualitárias e o nosso
pendor às diferenciações que excluem os "homens bons" ou a "gente boa"
das regras, sendo a marca de quem detém alguma forma de fama,
celebridade, "você sabe com quem está falando?" e, bem acima de tudo,
poder político!
Sem uma renúncia ao despotismo hierárquico que permeia de cabo a rabo
o cotidiano brasileiro, e do qual o governo continua a ser o melhor
exemplo - andar de bicicleta num trânsito desregulado pela confusão
cultural (veja, caro leitor, o meu livro Fé em Deus e Pé na Tábua) entre
igualdade e desigualdade (o sinal e o bom senso valem para todos, menos
para nós, motoristas de ônibus, altos funcionários do Estado ou donos
de "carrões") -, estaremos promovendo mortes brutais, jamais o velho,
limpo e mais do que desejável andar de bicicleta!
Reitero à família da Juliana, ciclista símbolo da fé na igualdade, o meu pesar e a minha solidariedade.
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