Roberto DaMatta
O dalai-lama disse: só eu posso decidir sobre minha
reencarnação! A frase perturbou-me. Seria possível decidir sobre a
reencarnação? Curioso, descobri, por meio de meu primo Ronaldo, um
médium chamado Álvaro Alvez, kardecista emérito, que poderia confirmar
se era mesmo possível decidir reencarnações.
Repito o que ouvi de mestre Álvaro: "A reencarnação anula o fosso
entre o viver e o morrer porque ela vincula um estado com o outro. Em
conformidade com a Lei do Eterno Progresso Espiritual, reencarnamos até o
resgate satisfatório das dívidas contraídas em vidas passadas. Com a
reencarnação - continuou Álvaro Alvez -, recusamos definir a vida pela
morte. Assim sendo, enquanto a maioria olha a morte pelo espelho
retrovisor, os reencarnacionistas sabem que a morte leva o olhar para a
frente porque teremos sempre novas vidas para viver. A ideia de
reencarnação muda tudo!"
* * * *
Ao receber a pergunta sobre planejar reencarnações, mestre Álvaro foi
claro como um ministro: "Roberto - falou -, nada no campo espiritual é
impossível. Decida-se, como um lama, relativamente às suas próximas
existências e, quem sabe, você as realiza?" Pois como já profetizava
Quincas Berro D'Água, ao morrer pela terceira vez: "Cada qual cuide do
seu enterro, impossível não há!"...
Como, porém, iria reencarnar? Que papel escolheria para reexistir no
mundo e, nele, no Brasil? As incertezas eram infinitas e maiores ainda,
as possibilidades.
* * * *
Primeiro, veio-me a fantasia de voltar como craque de futebol,
artista de TV, sambista e até mesmo como o Eike Batista ou o William
Bonner. Um conselho do mestre, porém, obrigou-me a descartar essas
escolhas iniciais.
Fixei-me então em regressar como alto funcionário do governo.
Ministro de algum órgão sortido de recursos para obrar a vontade. Que
tal chefe da Casa Civil? Ou diretor da Casa da Moeda? Ou representante
do povo na Câmara ou no Senado? Nesses cargos teria não só a
oportunidade de resgatar minhas obrigações passadas, mas de criar em
dólares e falcatruas inúmeras dívidas futuras, de modo que eu estaria
sempre reencarnando (e assim vivendo) sem parar.
Nisso veio o recém-passado carnaval, que me fez pensar em renascer
como carnavalesco. Imaginei o sucesso de um enredo baseado nas
Mitológicas de Claude Lévi-Strauss. O desfile abriria com uma alegoria
baseada em O Cru e o Cozido, sendo seguida pela ala Do Mel às Cinzas,
para logo exibir o grande banquete inspirado na Origem dos Modos à Mesa e
terminar sensacional e apoteoticamente com O Homem Nu! Que coisa
incrível esses destaques, alas e carros alegóricos, no qual todas as
transformações, reversões, torções e códigos dos mitos ameríndios
estivessem em cena. Seria a carnavalização dos carnavais. Ademais, poria
em foco o "homem nu" (esse ser esquecido dos carnavais) e não essas
bundudas bombadas e, tenham dó, vestidas até o gargalo!
Muita fumaça e pouco fogo, disse a mim mesmo em Angra dos Reis, neste
último fim de semana, quando gozei da grata hospitalidade de Romulo e
Paula. Ali, diante de um mar transparente e de montanhas que me levavam
para um céu infinito, uma tremenda inveja deliberou que eu iria
reencarnar como dono de um daqueles modestos domicílios à beira-mar, com
um BMW numa porta e um barco de 60 pés, flutuando na minha praia.
Viveria saindo de um veículo para entrar no outro e, assim, resgataria
definitivamente minha dívida com o tal "trabalho" que os velhos romanos
sabiam ser mais um castigo do que um chamado ou vocação.
Assim cogitava quando vi na TV a selvageria dos sambistas paulistanos
diante da apuração de seu concurso de Escolas de Samba e, ato contínuo,
ouvi as diversas possibilidades interpretativas do regulamento que as
governa. Ao escutar as pérolas hermenêuticas diante de uma norma de
concurso de carnavalesco, decidi-me. Se puder, prometi a mim mesmo,
retornarei como foi meu avô Raul: juiz!
Como magistrado, interpretaria as leis do carma. E dentro da nobreza
republicana teria não apenas um excelente salário e outros auxílios mais
do que justos para a serenidade requerida pela minha profissão, mas só
poderia ser julgado por colegas e condenado unicamente por maioria
absoluta. E caso isso fosse possível, seria penalizado à prisão
domiciliar com direito, eis um dano extraordinário, a salário integral. E
como tudo o que quero no momento atual de minha encarnação é ficar em
casa, pois sair para o trabalho no Grande Rio é um inferno, encontrei
minha perfeita futura vida.
Só me resta agora realizar os exercícios espirituais condizentes para
determiná-la. Estou seriamente pensando em me encontrar com o
dalai-lama, pois ser juiz neste nosso Brasil republicano bem vale uma
viagem ao Tibete.
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