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domingo, 25 de dezembro de 2011

Judiciário envergonhado




É precisamente da leitura da Constituição (art. 103-B, § 4º) que não se pode inferir conforme o entendimento dos segmentos corporativos da sociedade brasileira de que os Ministros do STF não se acham submetidos ao controle externo e social, o qual detém natureza puramente administrativa. Sobre isto, a Carta não faz acepção de Juiz algum e o entendimento dessa insubmissão importa dizer que os Membros da Suprema Corte não são Juízes ou, sendo Juízes, não estão sujeitos à ordem normativa estabelecida para todos.

Do ponto de vista do sistema constitucional, o argumento parece absurdo, porque reserva a determinada categoria funcional um feixe de privilégios inteiramente fora de contexto.

O que se passa, na verdade, é que o sistema do controle externo da Magistratura Nacional, sempre rechaçado, mediante sólidos consideranda, conquanto acidentais, pelos arautos do corporativismo estratificado em nosso país, acabou sendo tolerado na Constituição com incompletudes conceituais.

Em primeiro lugar, as composições do CNJ não deveriam ser eleitas do modo como presentemente o são. Essas composições deveriam ser popularmente submetidas ao processo eleitoral comum, pois o controle externo e social é para ser exercido por representantes diretos do povo, sem exclusão dos segmentos de juristas, mas não exclusivamente com eles e por eles. Por outro lado, conforme se possa compreender, em hipótese, a existência de conflitos entre a jurisdição de última instância e a circunscrição administrativa também de última instância em sede de controle externo (não se trata aqui de controle interno da Administração Pública), sucede que o controle para um tal tipo de conflito institucional deve ser resolvido politicamente, mediante procedimento próprio a ser submetido, de lege ferenda, ao Senado Federal como nos casos dos crimes de responsabilidade atribuídos a altos dignitários da República.

Este momento de crise institucional em que se acha efervescente o debate público sobre os limites da atuação do CNJ, enquanto agência constitucional para o controle externo da Magistratura, já se divisou desde antes da Constituição de 1988 e mesmo depois do seu advento. A resistência corporativa à instituição de um órgão para o exercício desse tipo de controle sempre pareceu figadal aos demais segmentos da Nação. Há um artigo da lavra deste autor, publicado na Revista dos Tribunais ainda em 1994 sob o título Judiciário Envergonhado: argumentos no favor do seu controle externo (ano 83, jan/94, vol. 699, págs. 243 e SS), que retrata bem o cenário em que presentemente está mergulhado o país.

Quanto à avaliação que esses mesmos segmentos corporativos vem procedendo acerca do estilo da Ministra Eliana Calmon, discorda-se em gênero, número e grau das críticas que lhe vem sendo injustamente desferidas. A obra da Corregedora Nacional de Justiça é irreprochável e não merece reparos. O combate à corrupção tem de ser intrépido, contundente, para não deixar pedra sobre pedra. Pois, do contrário estaremos fazendo um exercício de conciliação entre ordens virtualmente inconciliáveis e isso é rigorosamente paradoxal. E nisto também reside o maior dos perigos para a estabilidade social. Segurança jurídica não pode servir, ainda que inconscientemente, como pretexto ou instituto de proteção da clandestinidade, da fraude e da esperteza. Tudo isso que à luz do sol se dissipa e que um argumento ingênuo de generalização corrobora. Segurança jurídica, que é mínimo de Justiça, também é móvel de sustentação normativa do Estado racional, o qual deve manter a paz e a Justiça, mediante um tratamento igualitário rigorosamente a todos, e não apenas àqueles áulicos que se esmeram na arte de adular poderosos, em cujos palácios, afinal, tudo se arranja à revelia da Nação.

Sossegue o leitor ainda preocupado com os acontecimentos de fato perturbadores que assistimos no Brasil, hoje! Do caos é que provém a ordem mais consubstancial aos valores essenciais. Quem está acostumado com privilégios não sabe se conduzir solidariamente, e por isso resiste. É muito difícil ser diferente, sobretudo numa sociedade de economia periférica como a nossa. Para os que sofrem, quanto pior melhor, porque o atual sistema não pode subsistir por muito tempo mais. Está absolutamente decadente, é retrógrado, é injusto e excludente, e não está, por isso mesmo, de acordo com o espírito da Constituição Cidadã.

Uma nota conjunta das associações de Magistrados que suscita enquadramento da autoridade que agiu de conformidade com o seu próprio regimento funcional (se inconstitucional esse regimento referido em norma resolutiva, segue-se aí outra história) serve apenas para acelerar o processo, já de todo traumático. O bom de tudo é que se pode pressentir que o país está chegando ao ponto em que o controle externo e social da Magistratura pode deixar de ser simplesmente seletivo, um mecanismo mais ou menos de fiscalização, conforme tem acontecido até agora e desde o seu nascedouro em 2004. Podemos estar vivenciando o anticlímax para o aprimoramento definitivo dos mecanismos de controle da Magistratura e do Poder Judiciário entre nós, sem eufemismos.

O Congresso Nacional deve se debruçar sobre essa matéria, liquidar de vez a apreensão institucional disso resultante e recorrente, e incluir os enunciados que não foram incluídos à época, ante razões corporativas que ainda bradam com grande desenvoltura e presunção. Sobre isto, dentre outros enunciados, sugere-se acrescentar, mediante Proposta de Emenda Constitucional, um novo inciso ao art. 52, da Carta (inc. II-B), para que se garanta uma nova competência ao Senado Federal, traduzida em processar e julgar os conflitos, em última instância, entre a Jurisdição e o Controle Externo, exercido nos termos do art. 103-B, § 4º, da Constituição.

Os tempos são outros, porém muita gente com uma mentalidade ultrapassada ainda continua na cena política e funcional do Estado brasileiro. É preciso virar essa página de nossa história, o que não se fará sem traumas. O processo está apenas começando.

Outrossim, o destemor só prevalece, mesmo no Estado de Direito, em termos relativos, porque o autoritarismo, quase sempre disfarçado e que ainda afeta gravemente sociedades do tipo da nossa, não tem freios e nem regime de controle eficaz, e é do costume adjudicar para si o discurso ético como forma subliminar de conservar as suas práticas avelhantadas. É dessa atmosfera que ressaltam as chamadas ditaduras de ocasião, ou dissimuladas.

Por enquanto, o STF é mesmo o órgão da República que detém o proverbial predicado de errar por último, mesmo em sede de constituição acessória e acidental de políticas públicas, sendo que esse paradigma pode não mais corresponder aos ditames da pós-modernidade. Por isso mesmo, não por acaso a derrocada do comunismo aconteceu num átimo, a despeito de suas estruturas mastodônticas e tradicionais.

O debate em comentário não se encerra enquanto a Constituição se mantiver arranhada em pontos substanciais de suas normas e valores. O caráter seletivo da responsabilização jurídica com que se exercita o poder público retira o conteúdo democrático e republicano de sua atuação e dos fundamentos com que se estabelece. Esses fundamentos são, pois, consubstanciais ao caráter pétreo de várias das normas constitucionais em alusão, como a separação dos poderes, a igualdade perante a lei (equal justice under law) e a soberania do povo.

Roberto Wanderley Nogueira
Doutor em Direito Público
Professor-adjunto da UFPE e da UNICAP
Juiz Federal em Recife

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