Arnaldo Jabor
Eu andava em direção à praia quando veio a bofetada. Sem motivo nenhum, um
menino me meteu a mão na cara. Caí atordoado no chão, sem saber quem era o
garoto e por que me agredira. Ele saiu andando e nem tive tempo de reagir. Até
hoje sinto a dor de minha covardia. Meu pai melhorara de vida e saímos do
subúrbio para a zona sul, na Urca. A zona sul era mágica, longe das casinhas
tortas de porta e janela, de vilas e valas, de terrenos baldios onde pastavam
cabras. Nos fins de semana, os pobres do subúrbio lotavam ônibus e enchiam a
praia com uma massa de corpos pardos e desgraciosos, trazendo farnéis de
piquenique, bolas de futebol para linhas de passe, tamborins para batucadas.
Eram chamados de "saquaremas" pelos moradores desgostosos com os 'invasores'
farofeiros.
Entendi a bofetada: eu era um "saquarema" naquela luta de classes entre subúrbio e zona sul. Eu tinha o quê? Oito anos, talvez. Os meninos eram educados com castigos humilhantes, cascudos, surras de chinelo e bambu. "Assim se forjam homens", pensavam os pais, cultivando a 'psicologia da brutalidade'.
A severidade violenta era replicada na rua pelos meninos, em guerras de fortes contra fracos e, para isso, os saquaremas eram as vítimas perfeitas.
Cicero (filho de um cruel professor de latim) já fazia halteres aos 14 anos, Ceará era um sertanejo atarracado, corpo de chimpanzé. Acreano, se vingava de seu destino de filho de empregada. Espancavam os saquaremas com chutes na cara, caldos violentos no mar.
Naquela violência havia uma pulsão de sexualidade, que decifrávamos com retalhos de estórias de sacanagem que vagabundos de rua nos ensinavam: anedotas sujas, doenças venéreas com nomes terríveis, cancro duro e cancro mole, gonorreia que gotejava sem cura entre os mais velhos. Lembro-me do pânico de minha mãe na praia quando pegamos "camisas de vênus" (o poético nome das 'camisinhas') jogadas na areia, soprando-as como bolas de encher.
Já sabíamos tortamente da relação sexual:
"Sabia que sua mãe dá para o seu pai?!" - berrava um garoto.
"Minha mãe, não!" - protestava o outro - "Não mete minha mãe no meio que eu meto no meio da sua mãe!" - a briga ficava mortal nas beiras de sarjeta. "Dá sim, dá sim" - insistia o outro apanhando - "se for pela frente nasce mulher, se for por trás nasce homem!"
De noite, eu imaginava ruídos de amor no quarto de meus pais e, de manhã, minha mãe parecia-me uma pecadora, com o corpo nu sob a camisola.
As meninas viviam sempre longe. Andavam em grupos, cochichando, rindo muito, pois sabiam-se inquietantes para nós. Tudo que vestiam era ocultação. Maiôs inteiros, vestidos de plissados e longos, sempre sob a vigilância dos pais, condenando-as a uma vida de 'pureza', pois o supremo medo era serem consideradas 'galinhas'.
Elas se moviam em ondas, como um bailado; quando pulavam corda, os vestidos se abriam e suas pernas saltavam em câmera lenta, e seus rostos afogueados nos observavam em rapidíssimos olhares - flashes para captar o que sentíamos. Elas vigiavam nossa fascinação e seduziam-nos, afetando desinteresse por nós, atraentes, mas intocáveis, sempre além de nossa fome, sempre além, mesmo meneando os quadris num bambolê, ou ajeitando a meia soquete ajoelhadas, quando víamos de relance coxas que levavam ao grande mistério do corpo nu.
Os maiores, como Cicero, olhavam-nas sem ar, com uma fome diferente da nossa.
Isolados das meninas, imperava a caçada dos mais fortes aos 'babacas', tribo da qual eu fazia parte, com o perigo de cair no gueto dos 'viados', agarrados em banheiros, submetidos em cantos escuros de vilas e capinzais.
Cicero era o mais temido comedor de pequenos, ou agarrados à força ou submissos a seu poder de rapaz forte.
Cicero tinha um irmão de nossa idade, apelidado de Grapete ('quem come Grapete, repete') e uma irmãzinha de 5 anos. Grapette era fraco e branco e um dia apareceu de olho roxo e com a boca e o nariz cobertos de esparadrapos. Fora pego no fundo da garagem com outro menino dentro do carro do pai. "Se der de novo, eu te mato..." - foi a sentença de morte de Cicero ao irmão, depois de espancá-lo como a um saquarema.
A partir daí, Grapete passou a ser visto com cruel deboche por todos nós. Ficou diferente, voz sumida, pelos cantos, um rosto menos infantil, torcido de angústia.
Um dia, Grapete anunciou: "Hoje tem teatro lá em casa. Para assistir tem de pagar - dinheiro ou presente!" Era tão estranha a tristeza de Grapete, que despertou nossa curiosidade. No sótão da casa havia malas velhas, um sinistro manequim de gesso, pilhas de jornais e uma cortina dourada tapando uma porta.
Grapete recolhia os 'ingressos' com ar sério e nervoso, avaliando o valor: Balas Ruth, figurinhas do álbum de cantores de rádio, bolas de gude 'olhinho' (as coloridas bolas americanas) e ioiôs importados da era Dutra. Olhávamos sem entender o que ia acontecer. O rosto de Grapete estava duro, assustador. Ele apagou a luz e foi até a cortina. "Agora, o grande show do circo Dudu!", anunciou com voz agressiva. Quando abriu a cortina, surgiu a luz avermelhada da tarde que vinha de uma janela ao fundo. Em pé, imóvel, muito branca, inteiramente nua, a irmãzinha de Grapete e Cicero. Loura, pálida, parecia transparente na contraluz que invadia a poeira do sótão. Em seu corpo nu, olhávamos o triângulo perfeito do sexo, com um fino traço vertical no meio. A menina olhava para cima, fitando o céu, com uma aura dourada nos cabelos.
"Quem quiser encostar a mão tem de pagar mais!" - sua voz era vingativa - um bruto mercador, o outrora frágil Grapete. "Eu tenho a figurinha difícil do Albertinho Fortuna, da Rádio Nacional!" - gritou um dos garotos. Grapete aceitou a rara figurinha e o garoto foi até a branca estátua viva.
Devagar, chegou bem perto e encostou a mão na menina, cheirando depois o próprio dedo. A noite caiu e fui para casa com o coração disparado e uma nuvem escura de emoções inexplicáveis. Lembrando-me disso hoje, creio que foi a cena mais bela e triste de minha infância.
Entendi a bofetada: eu era um "saquarema" naquela luta de classes entre subúrbio e zona sul. Eu tinha o quê? Oito anos, talvez. Os meninos eram educados com castigos humilhantes, cascudos, surras de chinelo e bambu. "Assim se forjam homens", pensavam os pais, cultivando a 'psicologia da brutalidade'.
A severidade violenta era replicada na rua pelos meninos, em guerras de fortes contra fracos e, para isso, os saquaremas eram as vítimas perfeitas.
Cicero (filho de um cruel professor de latim) já fazia halteres aos 14 anos, Ceará era um sertanejo atarracado, corpo de chimpanzé. Acreano, se vingava de seu destino de filho de empregada. Espancavam os saquaremas com chutes na cara, caldos violentos no mar.
Naquela violência havia uma pulsão de sexualidade, que decifrávamos com retalhos de estórias de sacanagem que vagabundos de rua nos ensinavam: anedotas sujas, doenças venéreas com nomes terríveis, cancro duro e cancro mole, gonorreia que gotejava sem cura entre os mais velhos. Lembro-me do pânico de minha mãe na praia quando pegamos "camisas de vênus" (o poético nome das 'camisinhas') jogadas na areia, soprando-as como bolas de encher.
Já sabíamos tortamente da relação sexual:
"Sabia que sua mãe dá para o seu pai?!" - berrava um garoto.
"Minha mãe, não!" - protestava o outro - "Não mete minha mãe no meio que eu meto no meio da sua mãe!" - a briga ficava mortal nas beiras de sarjeta. "Dá sim, dá sim" - insistia o outro apanhando - "se for pela frente nasce mulher, se for por trás nasce homem!"
De noite, eu imaginava ruídos de amor no quarto de meus pais e, de manhã, minha mãe parecia-me uma pecadora, com o corpo nu sob a camisola.
As meninas viviam sempre longe. Andavam em grupos, cochichando, rindo muito, pois sabiam-se inquietantes para nós. Tudo que vestiam era ocultação. Maiôs inteiros, vestidos de plissados e longos, sempre sob a vigilância dos pais, condenando-as a uma vida de 'pureza', pois o supremo medo era serem consideradas 'galinhas'.
Elas se moviam em ondas, como um bailado; quando pulavam corda, os vestidos se abriam e suas pernas saltavam em câmera lenta, e seus rostos afogueados nos observavam em rapidíssimos olhares - flashes para captar o que sentíamos. Elas vigiavam nossa fascinação e seduziam-nos, afetando desinteresse por nós, atraentes, mas intocáveis, sempre além de nossa fome, sempre além, mesmo meneando os quadris num bambolê, ou ajeitando a meia soquete ajoelhadas, quando víamos de relance coxas que levavam ao grande mistério do corpo nu.
Os maiores, como Cicero, olhavam-nas sem ar, com uma fome diferente da nossa.
Isolados das meninas, imperava a caçada dos mais fortes aos 'babacas', tribo da qual eu fazia parte, com o perigo de cair no gueto dos 'viados', agarrados em banheiros, submetidos em cantos escuros de vilas e capinzais.
Cicero era o mais temido comedor de pequenos, ou agarrados à força ou submissos a seu poder de rapaz forte.
Cicero tinha um irmão de nossa idade, apelidado de Grapete ('quem come Grapete, repete') e uma irmãzinha de 5 anos. Grapette era fraco e branco e um dia apareceu de olho roxo e com a boca e o nariz cobertos de esparadrapos. Fora pego no fundo da garagem com outro menino dentro do carro do pai. "Se der de novo, eu te mato..." - foi a sentença de morte de Cicero ao irmão, depois de espancá-lo como a um saquarema.
A partir daí, Grapete passou a ser visto com cruel deboche por todos nós. Ficou diferente, voz sumida, pelos cantos, um rosto menos infantil, torcido de angústia.
Um dia, Grapete anunciou: "Hoje tem teatro lá em casa. Para assistir tem de pagar - dinheiro ou presente!" Era tão estranha a tristeza de Grapete, que despertou nossa curiosidade. No sótão da casa havia malas velhas, um sinistro manequim de gesso, pilhas de jornais e uma cortina dourada tapando uma porta.
Grapete recolhia os 'ingressos' com ar sério e nervoso, avaliando o valor: Balas Ruth, figurinhas do álbum de cantores de rádio, bolas de gude 'olhinho' (as coloridas bolas americanas) e ioiôs importados da era Dutra. Olhávamos sem entender o que ia acontecer. O rosto de Grapete estava duro, assustador. Ele apagou a luz e foi até a cortina. "Agora, o grande show do circo Dudu!", anunciou com voz agressiva. Quando abriu a cortina, surgiu a luz avermelhada da tarde que vinha de uma janela ao fundo. Em pé, imóvel, muito branca, inteiramente nua, a irmãzinha de Grapete e Cicero. Loura, pálida, parecia transparente na contraluz que invadia a poeira do sótão. Em seu corpo nu, olhávamos o triângulo perfeito do sexo, com um fino traço vertical no meio. A menina olhava para cima, fitando o céu, com uma aura dourada nos cabelos.
"Quem quiser encostar a mão tem de pagar mais!" - sua voz era vingativa - um bruto mercador, o outrora frágil Grapete. "Eu tenho a figurinha difícil do Albertinho Fortuna, da Rádio Nacional!" - gritou um dos garotos. Grapete aceitou a rara figurinha e o garoto foi até a branca estátua viva.
Devagar, chegou bem perto e encostou a mão na menina, cheirando depois o próprio dedo. A noite caiu e fui para casa com o coração disparado e uma nuvem escura de emoções inexplicáveis. Lembrando-me disso hoje, creio que foi a cena mais bela e triste de minha infância.
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