José Nêumanne
Nos EUA há legais e fora da lei: no Brasil excesso de normas permite a alguns ficarem acima delas
Há um paralelo que não pode ser omitido entre a prisão do diretor do Fundo Monetário Internacional (FMI), em Nova York, e a crise deflagrada em pleno centro do poder republicano no Planalto Central do Brasil pela constatação de que o patrimônio da empresa de assessoria do chefe da Casa Civil cresceu 20 vezes nos quatro anos em que hibernou entre dois ministérios.
Nos Estados Unidos dos pais fundadores da Revolução Americana de 1776, o favorito à eleição presidencial da França, em cujas mãos repousavam as esperanças da retirada do Primeiro Mundo da crise, Dominique Strauss-Kahn, foi preso ao tomar o avião que o levaria para fora do país, sob a acusação de tentativa de estupro da camareira de um hotel. No Brasil contemporâneo, o governo a que Antônio Palocci serve faz o possível e o impossível para evitar que este se explique sobre delito que jura que ele não cometeu e do qual é acusado pela oposição, que, por sua vez, não consegue definir qual poderá ter sido a norma legal que teria sido atropelada. Logo, o figurão petista corre o risco de perder posto e poder por sua fragilização política, mas não passa pela cabeça de ninguém que algum dia ele venha a responder por qualquer um dos crimes de que foi acusado, de vez que estes não foram tipificados. No Estado Democrático de Direito ao norte do Rio Grande, iguais perante a lei, cidadãos dividem-se em legais e fora da lei. Na República petê-lulista, assim como nas modalidades de antes, os nativos distinguem-se entre condenados a cumprir a lei e os que ficam acima da ordem que eles próprios impõem.
O policial que frustrou a ascensão do futuroso político e gestor providencial do capitalismo de nossos tempos não pensou um segundo que fosse no currículo brilhante do detido nem nas dificuldades que os países industrializados mergulhados na crise passarão a ter com a perda do cérebro privilegiado que poderia tirá-los do sufoco. A Strauss-Kahn não se deu nenhuma chance de aplicar uma carteirada tupiniquim do gênero “você sabe com quem está falando?”, mantra dos poderosos pilhados em flagrante no Brasil desde as capitanias hereditárias até a atual democracia de massas. Nem lhe coube vacilar movido por quaisquer considerações de ordem estratégica: o maganão foi preso porque violou a lei.
Contra o equivalente nacional ao caso do impetuoso “galã” gaulês não pesa nenhum dispositivo legal. Na prefeitura de Ribeirão Preto, Palocci protagonizou alguns escândalos que foram sepultados em nome de um antigo auxiliar visitado antes da hora pela Indesejada das Gentes. Avalista de sensatez do pretendente do Partido dos Trabalhadores (PT) à Presidência da República em 2002, o sanitarista tornou-se padrinho do casamento de Luiz Inácio Lula da Silva com a ortodoxia dita neoliberal e, em consequência, com a higidez fiscal. E, nessa condição, assumiu pose e poder de czar da economia. Mas o escândalo bateu-lhe à porta novamente, acusado que foi de participar de um grupo de companheiros caipiras que alugaram uma mansão suspeita em área nobre da capital.
Como ocorreu com Fernando Collor de Mello e Paulo Maluf, nada foi provado contra ele. Ainda assim, Palocci caiu do telhado, deixando o Ministério da Fazenda livre para um quadro técnico do PT infinitamente inferior a ele em força e prestígio. E perdeu a chance de ser ungido sucessor pelo chefe, abrindo caminho para Lula eleger Dilma. Mas a tentativa grotesca de desqualificar o depoimento definitivo contra sua presunção de inocência, devassando de forma truculenta e asquerosa o sigilo fiscal do caseiro Francenildo dos Santos Costa, não o impediu de voltar à Câmara dos Deputados e ocupar posto de relevo na campanha vitoriosa da petista à Presidência da República. As mãos manchadas, no mínimo, pela injusta perseguição ao modesto trabalhador contra quem jogou seu peso de todo-poderoso sobre um insignificante súdito continuam livres para agir enquanto sua presença no alto comando republicano não passar a ser mais perniciosa do que útil.
O ex-prefeito sob suspeita, ministro da Fazenda destronado por um escândalo e chefe da Casa Civil ameaçado por outro, formalmente, não violou a ordem jurídica. Afinal, no Estado Democrático de Direito à brasileira não há normas que regulem o lobby nem autoridade disposta a fazer cumprir os dispositivos legais que, em teoria, reprimem o tráfico de influência. Aqui não se leva a sério o ancestral axioma romano segundo o qual à mulher de César não basta ser honesta, deveria parecê-lo. “Afinal, eu nem me chamo César”, diria o melhor aluno da classe na escola do professor Lulinha.
Contra ele só conspira o fato de que patos mancos não nadam nos lagos palacianos de Brasília. O governo capaz de mandar seu bate-pau Vaccarezza postar agentes de segurança à porta das comissões para impedir reuniões que pudessem aprovar sua convocação para depor – uma violência nunca antes praticada nem mesmo por Hitler e Mussolini – despejará Palocci quando ele se tornar insustentável. E, então, nos arraiais oposicionistas tremularão bandeirolas festivas numa tentativa de esconder o fato de que, se sobra truculência nas hostes governistas, falta competência nas que fingem se opor. Fingem, sim, pois não há registro histórico de nenhum esforço de partido algum, da direita ou da esquerda, quando no governo ou na dita oposição, para tratar o tráfico de influência em cargos de poder pelo nome certo: crime. A meia impunidade que não impede que Palocci venha a perder o lugar quando se tornar mais inconveniente do que necessário o libera de punições de quaisquer naturezas na Justiça. E também garante a liberdade dos adversários que almejam postos no poder para repetir sua façanha de consultor de formidável êxito.
No faroeste nacional, não há mocinhos nem vilões. Há, sim, beneficiários de uma ordem em que leis demais permitem que elas não atinjam alguns poucos.
Jornalista, escritor e editorialista do Jornal da Tarde
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