José
Nêumanne
Retomada de territórios controlados pelo tráfico
causa-lhe prejuízos, mas não acaba com violência
Os jornais noticiaram neste fim de semana a denúncia
anônima da fuga do traficante Alexandre Mendes da Silva, o Polegar, de uma das
16 “comunidades” do Complexo do Alemão, na Penha, zona norte do Rio, na mala de
uma viatura policial a serviço da delegacia de Cabo Frio, no litoral fluminense.
Com presteza inusitada, a Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro distribuiu
uma nota na qual tentou pôr ponto final ao vexame, que contraria a saga de
heroísmo de que se revestiu a “histórica reocupação” pela sociedade nacional,
representada pelo Estado Democrático de Direito, de territórios que vinham sendo
governados na prática por bandos criminosos. Reza a declaração oficial: “As
investigações feitas pela Polícia Civil apontam que a denúncia anônima feita por
telefone à Ouvidoria do Ministério Público, de que o traficante Alexandre Mendes
da Silva, o Polegar, e um comparsa teriam fugido do Morro do Alemão, em um carro
da delegacia de Cabo Frio, é falsa. Mesmo assim, a polícia vai continuar
apurando a denúncia para dar total transparência ao trabalho da Polícia Civil.”
É claro que a denúncia pode ter sido de fato “falsa” e um profissional de
comunicação responsável, como pretende ser o autor destas linhas, não tem
autoridade alguma para contestar a conclusão dos investigadores. Mas até este
quase “Velhinho de Uiraúna” tem obrigação de pedir mais explicações aos solertes
investigadores do caso. Pois o teor lacônico da nota não condiz com a enxúndia
com que o assunto tem sido tratado pelas autoridades policiais nos últimos
dias.
Para começo de conversa, a Polícia Civil fluminense não
ocupa propriamente os primeiros degraus no pódio das instituições confiáveis
desta República. Então, conviria que deixasse para se pronunciar oficialmente
quando tivesse mais informações sobre o caso. Por exemplo: teria, de fato,
alguma viatura posta à disposição do distrito policial de Cabo Frio circulado
pelas vielas do território conflagrado, passando pelos bloqueios montados por
colegas ou pelas tropas federais que os ajudaram na operação? Houve razão
funcional para que isso ocorresse? E, se nenhum veículo a serviço de delegacia
distante percorreu os becos das favelas do Alemão, por que cargas d’água o
anônimo teria feito a tal denúncia? É possível que estas questiúnculas deixem de
ser respondidas, sob a alegação de que as tropas que libertaram as populações de
decênios de jugo do crime têm mais o que fazer do que dar atenção a um
jornalista ranzinza.
Mas a verdade profunda certamente conterá respostas a
dúvidas mais relevantes do que estas. Graças à cobertura dos telejornais
diários, digna até de merecer a denominação de Tropa de Elite 3, em referência
ao excepcional bangue-bangue nacional, com êxito de bilheteria que Lula, o Filho
do Brasil não alcançou, o público pagante tomou conhecimento, ao vivo e em
cores, do que ocorreu nas “reocupações” de Vila Cruzeiro e do Complexo do
Alemão. Em tempo real, saltaram aos olhos da grande maioria a ausência de
cadáveres, o baixo predomínio do vermelho sanguíneo nas cenas de ação e o fato
de os tímpanos não terem sido afetados por tiroteios. Tanto melhor, diria o
Conselheiro Acácio. Chega de balas perdidas e mortes brutais no cotidiano dos
cinturões miseráveis da periferia das metrópoles brasileiras. Só que, desde
então, proliferam pulgas atrás da orelha de quem prestou mais atenção a tudo. E
aí vem aquela vontade de soltar as papas da língua para questionar obviedades
ululantes que Nelson Rodrigues não deixaria passar, depois, é claro, de
registrar o próprio regozijo pela conquista do Brasileirão por seu tricolor das
Laranjeiras.
Houve, é certo, farta apreensão de armas e drogas nos
barracos, mas escassas foram as prisões, seja de bandidões de alto coturno, seja
de malandros ditos campainha. Uma destas, a do traficante Zeu, que participou da
chacina do repórter Tim Lopes, serviu mais para chamar a atenção para a
conveniência de reformar a legislação das execuções penais – uma vez que ele se
aproveitara de benemerências da vigente para fugir e se abrigar num barraco no
morro “reocupado” – do que propriamente para engrossar quantidade e qualidade de
prisioneiros da batalha finda. No céu dos tarefeiros de inutilidades, o rei
Pirro concordará com o que escrevi.
Mas, deixando de lado o símbolo do fiasco de aparentes
triunfos das armas, como convém, para não exagerar na ranhetice, urge registrar
a ocorrência no Rio de uma batalha política, ainda não vencida (falta ser
retomado o Morro do Vidigal, ocupado pela Favela da Rocinha), e não uma operação
policial bem-sucedida. Nela ficou claro que não faltou ao Estado força para
retomar territórios entregues aos criminosos pela negligência de Chagas Freitas,
Leonel Brizola e seus sucessores no governo do Estado, mas convicção e
disposição. Sérgio Cabral teve-as – talvez premido pelas exigências da Fifa e do
Comitê Olímpico Internacional, como ficou patente após a declaração da
presidente eleita, Dilma Rousseff, de que as Forças Armadas ficarão à disposição
do governador do Rio até a Copa do Mundo de 2014.
É claro que o tráfico de drogas, modalidade milionária
do crime organizado, teve vultosos prejuízos financeiros com a libertação
histórica, assim sem aspas, da população que mora nos territórios dos quais
antes delinquentes eram senhores feudais de baraço e cutelo. Mas a cidadania
precisa saber que o comércio da falsa felicidade química ainda funciona a pleno
vapor no Rio e no resto do mundo. E prosseguem vigentes as condições que tornam
os morros cariocas locais adequados para servir de entreposto a fornecedores de
entorpecentes: o profético alerta de Joaquim Nabuco sobre as nefastas
consequências da abolição da escravatura sem prévio preparo (ancestral hábito
nativo) vale hoje como antanho, conforme se demonstrou em cenas que, mesmo
reais, perderam em verossimilhança para as fictícias do filmaço de José
Padilha
Jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da
Tarde.
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