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quinta-feira, 24 de junho de 2010

Do alto do pódio da paz à guerra do baixo calão

José Nêumanne
Dunga abre luta contra pronomes e críticos de métodos que adota para treinar seleção nacional
Dificilmente poderá ser encontrada expressão mais cínica e mais calhorda que a tal da “pátria em chuteiras”.
Mesmo nas primícias do profissionalismo do futebol (até os últimos anos do reinado de Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, nos anos 1970), os Campeonatos Mundiais desse esporte nunca refletiram mais que habilidades específicas para a prática de uma modalidade em cujo resultado final a sorte pode ter influência similar ou às vezes superior ao desempenho. E este em nada depende da qualidade média de vida dos países cujos selecionados têm mais habilidade e vencem amiúde.
Lá pelo século 18, o escritor e pensador Samuel Johnson escreveu que “o patriotismo é o último refúgio de um canalha”. Na aparência, a afirmação do célebre frasista refletia o comportamento irônico de um povo que nunca se levou a sério, apesar de seu país haver conquistado o mundo e a glória na guerra e na literatura – a ponto de passar a ser conhecido como a “pérfida Albion” (denominação da Inglaterra na época de colônia romana). Mas uma leitura imparcial e desapaixonada dos fatos mostrará que – na guerra, na administração pública, na política e na diplomacia – há mais cinismo na exploração deslavada do amor do homem comum pelo lar e pela terra que na crítica feita pelo amigo fraterno do grande historiador da decadência do Império Romano, Edward Gibbon. No esporte em geral e, em particular, no futebol, que, em seu moldes atuais, começou a ser jogado pelos ingleses um século depois de Johnson ter cunhado suas frases sarcásticas, ela é mais válida que nas outras atividades humanas acima citadas.
Não passa de hipocrisia a adoção da lição do barão de Coubertin tentando dar às competições esportivas um falso condão de nobreza, que não condiz com a acirrada disputa em arenas, campos e tatames. O triunfo do velocista negro americano Jesse Owens, presenciado pelo ditador nazista Adolf Hitler na Olimpíada de Berlim em 1936, mesmo tendo negado na prática a teoria absurda da superioridade da raça ariana sobre as outras, em nada aliviou as agruras dos descendentes de escravos nos Estados Unidos. As disputas da liderança nos quadros de medalhas dos Jogos Olímpicos na segunda metade do século 20 não refletiram a igualdade de condições entre o imperialismo ianque, de um lado, e o império soviético, do outro. O ouro distribuído nos pódios a ginastas e atletas russos ou das Repúblicas ocupadas pelos comunistas não bastou para impedir a derrocada do regime de Lenin, Stalin e seguidores. As vitórias de pugilistas, atletas e atacantes de ponta de rede de vôlei de Cuba não refletiam as condições de vida da população da ilha caribenha sob a tirania dos irmãos Castro.
No mundo contemporâneo, modalidades olímpicas são mais um comércio que mobiliza fortunas do que nobres manifestações de saúde do corpo e da mente. No caso do futebol, a exploração da paixão popular por negociantes inescrupulosos é ainda mais gritante. Numa competição cujo apreço pela ética negocial pode ser medido pela proibição de acesso ao estádio de torcedoras holandesas porque a organizadora da Copa, a Fifa, suspeitou de estarem fazendo propaganda de uma empresa que não participou de seu rateio milionário de marketing, cobrar da excessiva cobertura dos meios de comunicação cumplicidade patriótica é de uma desfaçatez de assustar o próprio Johnson.
Mas já que o jogo é esse, meus amigos, vamos jogá-lo dentro da regra que nos foi imposta pelos donos do espetáculo, a Fifa e sua afiliada brasileira, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Tendo a Pátria vestido uma camiseta amarela para sair por aí, é de todo conveniente exigir de quem cobra patriotismo dos críticos um mínimo de compostura. O futebol, hoje menos uma atividade profissional que uma fonte de renda ainda mais fabulosa que os gols marcados pelo artilheiro da seleção Luis Fabiano, paga fortunas mirabolantes aos astros do espetáculo exibido a um público de bilhões de pagantes. Chegou, então, o momento de lembrar que privilégios pressupõem obrigações. Por exemplo: na Pátria que eles imaginam representar se fala uma língua, no caso do Brasil, a portuguesa, enobrecida pelo estro fundador do poeta e soldado caolho luso Luís de Camões e por cultores como o amanuense mulato epiléptico carioca Joaquim Maria Machado de Assis. Vencer o jogo, como fez a equipe brasileira domingo em Johannesburgo, principal sede da Copa africana, anima a torcida brasileira. Mas honrar a Pátria é mais que isso: é, por exemplo, não esmurrar o vernáculo como se este fosse um inimigo figadal.
Com o salário que recebe da “pátria em chuteiras” e tendo a obrigação de falar em público pelo menos duas vezes por semana, o gaúcho de Ijuí Carlos Caetano Bledorn Verri devia ter recebido de seus empregadores a missão de não agredir os pronomes oblíquos, substituindo-os por retos em suas frases anômalas. Da mesma forma, além de selecionar seus pupilos e dirigi-los nos treinos, o treinador deveria ter aprendido na infância o hábito de não insultar adversários e críticos com palavras de calão rasteiro, incompatível com seu sucesso profissional no rico negócio do esporte bretão.
Ao disputar uma luta livre particular contra a língua e profissionais encarregados de transmitir e avaliar o desempenho de sua seleção, o técnico brasileiro tem um comportamento à altura do anão da Branca de Neve do qual seu tio Cláudio tirou o apelido que passou a usar como nome de guerra. E não do capitão que do alto do pódio da paz na Copa dos Estados Unidos ergueu a taça Jules Rimet e reafirmou a superioridade técnica do jogador de futebol brasileiro nos gramados. Ao não puni-lo, a Fifa se tornou cúmplice dele. Pois o execrável episódio deveria alertar os maiorais do futebol mundial para a necessidade de adotarem um código de conduta em respeito aos bilhões de torcedores que enchem sua bolsa de ouro e sua alma de glória.
Jornalista, escritor e editorialista do Jornal da Tarde

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