José Nêumanne
Livro de Audálio Dantas faz mais justiça ao protagonista que filme de Barreto
Os adversários de Luiz Inácio Lula da Silva acham que ele é dotado de teflon, ou seja, que nada da sujeira que seus apaniguados produzem, ou que lhes é atribuída, macula sua lapela impecável. Mas nem a impermeabilização do mais hábil governante brasileiro desde o desembarque de Tomé de Souza na Bahia escapa à ironia da História. Comprovam-no as vítimas do golpe dos camelôs que vendem o falso DVD do filme Lula, o filho do Brasil, de Fabio Barreto. A capa reproduz o cartaz da produção do clã Barreto, preparada para ser a maior bilheteria de “nunca antes na história deste país”, com a estrela Glória Pires no papel da mãe do líder, dona Lindu, versão feminina de Confúcio no agreste. Mas, ao ser posto para tocar, o DVD não reproduz a fita pretendida, e, sim, O ABC da greve, de Leon Hirszman, sobre a greve dos metalúrgicos de São Bernardo, que ajudou a corroer nas bases a ditadura militar. Haverá ironia maior que comprar a versão pirata de uma falsificação e levar um documentário autêntico e bom?
E esta não é a única ironia da História ao lidar com um fenômeno de comunicação que sepulta bem intencionados e os conduz ao Inferno, conforme máximas atribuídas aos sábios do povo, sintetizados no filme em dona Lindu. Com o filho dela “bombando” nas pesquisas de popularidade, ao atingir 82% no segundo mandato, qualquer um preveria um êxito de matar Xuxa e Renato Aragão de inveja nas bilheterias de cinema do País. Só que a pule de dez começou sua trajetória de arrasa-quarteirão como se fosse um traque junino num copo d’água.
Uma coisa nada tem que ver com a outra por várias razões, sendo uma das mais fortes delas a evidência de um ingresso de cinema custar R$ 18,00, enquanto o voto, além de obrigatório, ser gratuito. Resta, porém, a lição fundamental para os oportunistas que imaginavam transformar o carisma pessoal de Lula em fonte inesgotável de lucro de que, para fazer sucesso como o verdadeiro, o Lula do cinema teria de, pelo menos, se assemelhar um pouquinho mais ao real do que aquela mistura improvável, levada à tela, de herói revolucionário realista socialista com galã de favela. O presidente chegou ao auge da popularidade graças a uma receita equilibrada de defeitos e virtudes, similar à matéria de que são feitos os eleitores brasileiros comuns, particularmente os do segmento mais pobre e inculto da população, e bem diferente do protagonista do filme, sem defeitos, mas sem charme.
Melhor fariam os espertinhos que produziram a decepção cinematográfica do verão se não tivessem escolhido como base a tese, de constrangedora ingenuidade, de Denise Paraná, relançada em livro, com modesto êxito comercial. Mas, sim, um texto que capta o melhor que há no encanto e no charme - que nem os mais ferrenhos adversários negam - da “história do pequeno retirante que chegou à Presidência da República”. O livro O menino Lula, de Audálio Dantas, ao contrário da fita canhestra de propaganda política do clã Barreto, faz justiça ao protagonista e ao povo brasileiro, que caiu de amores por ele desde que nele viu a chance de assumir o mais alto poder da República sem a intermediação dos bacharéis de antanho. A saga do moleque a quem o pai bruto negava os picolés oferecidos aos meios irmãos, alegando que ele não saberia chupá-los, narrada por um escritor de talento e ilustrada por um excepcional xilogravador, Jerônimo Soares, filho do “poeta repórter” José Soares, convence o cidadão comum de que este não precisará se esforçar muito para transportar nos ombros outro igual a ele, como no hit pop He ain’t heavy, he’s my brother (Ele não é pesado, é meu irmão, de Bobby Scott e Bob Russell, sucesso dos Hollies).
O autor de O menino Lula busca em cenas comezinhas do cotidiano as bases da identificação que o político do futuro teria com o cidadão comum. Ele mesmo egresso de Tanque d’Arca, no sertão também nordestino de Alagoas, o repórter brilhante de sempre não trouxe a lume notas brilhantes do futuro gênio, mas dificuldades sofridas em família sob a égide da mãe, não uma pretensa filósofa da aldeia, mas uma mulher escolada na necessidade de nutrir na escassez.
Quem de nós não se emociona com a lembrança do desvelo paterno quando a criança se feriu numa caçada a dois, um carinho tão raro no brutamontes que até hoje o filho destaca como a evidência de que do pai não recebia só pancada e bronca? Quem não identifica o afeto filial, sempre carregado de alguma censura, na recordação do estivador analfabeto lendo o jornal de cabeça para baixo?
Há mais explicações para a importância alcançada pelo protagonista nesses corriqueiros “causos infantis” que em toda a discursalhada pseudo-épica dos áulicos palacianos e dos pequenos burgueses seduzidos pelo charme proletário do pau-de-arara que subiu a rampa do poder. O livro de Audálio encanta porque ele vai buscar na infância as evidências da leveza de Lula. O filme de Fabio é pesado demais para ser carregado por nossa pobre gente débil, que prefere belas histórias reais a mentiras sem pé nem cabeça da luta pelo poder.
José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde.
Comentário do blogue: O Brasil é um País tão surreal que chega-se ao ponto de comprar a versão falsificada de um mito e levar a verdadeira...
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