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terça-feira, 13 de outubro de 2009

Como seremos vistos no futuro?

Arnaldo Jabor
Se olharmos velhas fotografias, revistas antigas, vemos como eram diferentes os rostos e gestos de antepassados. Acabei de fazer um filme dos anos 50 (A Suprema Felicidade) e tive de pesquisar gestos, semblantes e roupas da época. Aliás, as roupas de Rita Murtinho e a direção de arte de Tulé Peake são geniais como descrição do tempo. Vemos nas imagens todo mundo fumando, mulheres sempre com uma sombra de tristeza mesmo no sorriso, homens com bigodes de galã imitando Clark Gable, a sexualidade sutilmente disfarçada de pudor, o pecado e o adultério estimulando a conquista.
Mais para trás, nos anos 10, vemos a melancolia das mulheres em olhos baços, o amargor do abandono, vemos as barbas e cartolas arrogantes dos chefes de família, a voracidade ainda disfarçada de dignidade nos políticos, as crianças pálidas e de olhos xeroftálmicos; vemos como éramos mais baixinhos, sem graça, como a alimentação e a falta de remédios ceifavam a saúde; vemos, em suma, um atraso nos comportamentos e posturas que não se nota em filmes americanos de época (país rico e bem alimentado), mas que era visível em nosso "subdesenvolvimento".
E como seremos vistos, no futuro, neste nosso "passado"? Em "plano geral", as multidões de hoje parecem um carnaval sem música, uma animação histérica, fobias evitadas com gritarias eufóricas. Hoje, com a permissividade dos costumes massificados, a liberação sexual programada, a voracidade sem freio do consumo, as fábricas de novos desejos, o descaro de uma política que desmoralizou o escândalo, tudo isso desenha uma paisagem humana frenética, uma ventania de individualismo disfarçado de convivência, um egoísmo narcisista fingindo simpatia democrática.
Nas baladas, em comemorações feitas para os fotógrafos captarem caras e bundas, sinto por vezes uma grande solidão. Nem falo da minha (oh... antiga dor!...), mas uma solidão que se infiltra entre multidões dançantes onde todos querem ser vistos e amados. Há uma carência camuflada de euforia no ar. Dá para sacar que o problema principal dos chiques falsos, de celebridades desconhecidas e de deslumbrados em geral é que eles não veem ninguém a não ser eles mesmos, e como ninguém vê ninguém, ou você parte para um espalhafato assumido, um confessionalismo sem-vergonha, ou então jaz nos cantos do anonimato - supremo horror.
Ninguém tem mais vergonha de nada, exceto do constrangimento de não ser reconhecido. Fui a restaurantes, lojas, teatro, "lounges" e vi. Vi como seremos vistos, um dia no futuro. Vi os sorrisos arrogantes das botocudas (de botox) fazendo bico com os lábios para realçar os "botoxinhos", triunfantes princesas de um império invisível, acompanhadas de barrigas e bigodes, vi o rápido flash da gorjeta-quase-suborno de um gordo para lhe arranjarem a mesa da janela, vi o olho do garçom grato e envergonhado e vi todo mundo sorrindo, bocas abertas, ninguém quieto, todos sorrindo para fotógrafos invisíveis, vi os risos para esconder o medo e vi o medo por trás dos risos como uma síndrome de pânico gargalhante, não vi a displicência chique que invejo nos fleumáticos, só vi olhos buscando reconhecimento, a vaidade vicejando em cada rosto, ninguém via ninguém me via em minha investigação, eu, como se eu fosse um paparazzo da alma, vi as pernas douradas das peruas, cobertas de sedas e joias, vi que o "ancien regime" continua vigente, que suas toaletes rococós são remotas lembranças de uma imaginária monarquia cafona, vi duquesas de lycra, baronesas de silicone, condessas "pop" com tatuagem na bunda e correntinha no tornozelo, todas competindo com as putinhas, vi que a "cachorra" queria ser perua e as peruas queriam ser "cachorras", vi as cirurgias reparadoras, bigodes pintados, cabelos acaju, vi pochetes de dois mil dólares, bolsas de 3 mil, Vuittons falsas, Pradas fajutas, vi meias brancas em sapatos pretos e meias pretas vice-versa, vi verdes "fines herbes" entre dentes recém-capeados, vi zíperes de calças abertas, seios pulando para fora do soutien, sincronizados com gritinho de falso pudor, vi meninas da faixa etária "high school musical" dizendo palavrões que nem um cafajeste como eu diria, vi um ricaço de camisa de "poi" falando que tinha trocado uma mulher de 50 por duas de 25, vi peitos abertos com colares de ouro em cascata, vi blazers com brasão de almirante, vi cabelos implantados como canteirinhos de piaçava, unhas grandes no dedo mindinho e vi a chegada das celebridades, invadindo as casas, os teatros, como trens barulhentos, gargalhando, luzindo sob os flashes e sempre furando filas, nariz para cima, os caninos brancos rindo para fãs caninos, vi o mix de desprezo com vaidade das celebridades dando autógrafos como bênçãos divinas, vi os casamentos de atrizes durar duas semanas, entre duas edições de revista, vi roupas de onça, de zebrinha, de tigre e de dálmata, vi barrigas de cervejudos, vi metrossexuais querendo ser homossexuais sem sair dos armários, maus hálitos, excreções, rebotalhos, flatulências, eructações, babugens, oleosidade em caras tensas e a angústia aparecendo nos sovacos das camisas de seda, risos desesperados ocultando falências iminentes, vi corruptos saudados como heróis nas churrascarias entre picanhas e chuletas e honestos sendo humilhados pelas esposas decepcionadas, vi braceletes falsos, dentes falsos, risos falsos, bundas falsas, ricos falsos, casais se odiando diante do prato de tristes camarões empanados, vi caras amarradas, mulheres falando com voz fina de crianças, ostentando fragilidades sedutoras, vi piadas de mau gosto com gargalhadas e perdigotos, bêbados caindo sobre bêbadas, fotógrafos entrando na porrada com câmeras quebradas, não para evitar o flagrante, mas para fortalecer a notícia, jantares, óperas, coquetéis, casamentos comandados por peruas de walkie-talkies, noites de gala, bailes, premiações.
E pensei o pior: talvez no futuro tudo isso seja considerado elegante; talvez sejamos o passado "fino" de um futuro de robôs cafajestes.

2 comentários:

  1. li ontem esse artigo no jornal O Sul e resolvi catar na internerd. não sou nenhum fã inveterado do Jabor, mas esta crônica está espetacular.

    abs,

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  2. Diego,

    O Jabor é fantástico quando escreve nesse ritmo, uma coisa inimitável, em que representa todo o nosso desgosto com os acontecimentos. É verdade que todo escritor tem o dom de ora nos agradar, ora produzir um texto com o qual não nos identificamos.

    Um abraço, obrigado pelo comentário.

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