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segunda-feira, 30 de abril de 2007

E a utopia, onde fica a utopia? Por Gilberto Kujawski*


Após a leitura do meu artigo sobre o anacronismo das revoluções (A revolução, um gênero literário esgotado, 30/10), um casal muito amigo interpelou-me: “Muito bem, mas e a utopia, como viver sem utopia?” Boa pergunta. Pois o homem não seria homem se não fosse um ser essencialmente utópico, isto é, esforçado em melhorar, em ultrapassar- se em tudo o que faz. Vive com meio corpo fora da realidade (como D. Quixote), e até ao definir-se como “animal racional” se mostra utópico. Sua conduta mais freqüente é mais animalesca do que racional. 

A razão não faz parte do homem como um dom pleno e definitivo, e sim como uma tendência ou vocação, um horizonte distante, uma utopia. Este é o primeiro argumento contra a tese de que é preciso ter fé na revolução para cultivar a utopia. Não, a utopia é algo intrínseco à condição humana. O problema da revolução é seu radicalismo, o projeto de reinvenção da sociedade, desprezando e desqualificando todo o legado do passado, e arquitetando a reedificação da sociedade sobre alicerces inteiramente novos, concebidos com a coerência cristalina de um teorema de geometria, mas sem apego nem pertinência com o mundo vivido. A utopia revolucionária é abstrata e aniquiladora. “Fiat justitia pereat mundus”, faça-se justiça e que acabe o mundo, eis seu imperativo devastador. Ao destruir o mundo para impor justiça, a revolução destrói-se a si mesma. 


Mas há outra forma de utopia que não exige o aniquilamento da realidade presente, sim que assenta nesta para melhorá- la e aperfeiçoá- la, sem violência contras as pessoas e as instituições. Ortega y Gasset vislumbrou essa utopia incruenta num velho e saboroso ensaio, de 1916, intitulado Estética en el tranvía, literalmente, Estética no Bonde (Obras Completas, II). Trata-se de refletir sobre o mecanismo psicológico que nos leva a avaliar como belo ou feio um rosto de mulher. Por que razão nos parece que este rosto é belo, aquele, feio e outro, incorreto? A estética tradicional, na esteira de Platão, parte de um ideal prévio de beleza, único e universal, e o compara com cada caso singular para medir a beleza. 

Semelhante construção teórica pressupõe que já conhecemos de antemão o ideal da beleza feminina, o que não é verdade. Ao contrário, andamos a vida inteira à sua procura e aquele ideal sempre nos escapa. Não existe um único arquétipo absoluto da beleza feminina, nem diversos arquétipos para as tantas variedades do sexo (a perfeita morena, a loira ideal, a ruiva sem defeito, etc.), que ao se multiplicarem indefinidamente perderiam a generalidade. Portanto, quando avaliamos a beleza do rosto feminino não partimos de nenhum modelo prévio, genérico ou universal. Partimos, isso sim, desse rosto singular que temos em frente. Cada rosto de mulher é para mim uma promessa de beleza. É estudando este e mais esse e aquele rosto em particular que elaboro meu ideal de beleza. Por vezes aquela promessa de uma beleza ignorada, novíssima, não se cumpre. Percebo um detalhe que prejudica o conjunto: é o nariz mal desenhado, ou que não combina com a curvatura da testa, a boca mal conformada, os olhos muito separados ou muito juntos, etc.

E aqui uma questão decisiva: por que razão percebo no rosto observado seus desequilíbrios e distorções estéticas? Só há uma resposta: porque tenho em minha mente a imagem do que deve ser um rosto perfeito. E de onde emergiu essa imagem? Saiu do próprio rosto que agora observo. Meus olhos corrigem aquilo que “é” ( o rosto com seus defeitos), de acordo com o que “deve ser”, mas isso de modo a confirmar e aperfeiçoar o plano do rosto original, sem violentá-lo, nem trocá-lo por outro rosto, limitando-se a aperfeiçoá-lo em suas linhas programáticas. A questão é a seguinte: como é que eu posso reparar nos defeitos desse rostinho até simpático, se não tenho em mente sua imagem ideal, emanada dele mesmo? “Cada fisionomia suscita, como que em mística fosforescência, seu próprio, único, exclusivo ideal.” O padrão da beleza feminina não é único e o mesmo; os padrões são múltiplos e imprevisíveis, cada fisionomia sugere o seu modelo exclusivo e insubstituível. 

O que acontece na estética ocorre, também, na ética. O dever não é único e genérico, como queria Kant com seu imperativo categórico. A cada pessoa corresponde seu dever, brotado como apetência de toda a minha individualidade. O rosto individual é, ao mesmo tempo, projeto de si mesmo e realização mais ou menos completa. Na moralidade sucede outro tanto. Cada pessoa está inscrita na silhueta moral de si mesma. Algumas a preenchem melhor; outras, pior. “Não meçamos, pois, cada qual senão consigo mesmo: o que é como realidade com o que é como projeto.” E aqui Ortega lembra as palavras de Píndaro, poeta grego que viveu cinco séculos antes de Cristo. “Chega a ser o que és. Este é o supremo imperativo moral: transformate em quem és.” E na política ou na economia será diferente? De modo algum. Assim como cada rosto encerra omodelo de si mesmo, e cada pessoa, o seu próprio dever, que é realizar-se a si mesma com máxima plenitude, analogamente, cada povo, cada país, cada momento histórico guarda nas suas peculiaridades e insuficiências, a proposta do que tem que ser sem quebra violenta ou ruptura da continuidade. 

O liberalismo político e econômico padece de inúmeras deficiências e dá margem a muitas injustiças? Nem por isso vamos destruir a sociedade capitalista de modo a não deixar pedra sobre pedra. Não é preciso a revolução para consertar os erros da História. A própria realidade, no que tem de distorcida e incompleta, em sua capacidade de inovação ilimitada, é a suprema incubadora de ideais, de normas e de perfeições, escreve o filósofo. Parece incrível como de um simples episódio anedótico, um percurso de bonde em seu cotidiano em Madri, Ortega pudesse extrair norma de tal fecundidade e de tal largueza, abrangendo todos os campos possíveis de valoração, o estético, o ético, o político e o econômico. Como aviso aos navegantes, previno que a fórmula orteguiana é totalmente nova, nada existindo de semelhante nos grandes mestres do pensamento em alemão, em francês ou em inglês. 

Se aqueles que se deveriam interessar por ela não tomam conhecimento, é porque lhes parece mais cômodo deslizar na inércia do pensamento, o que equivale a permanecer imobilizado no mesmo lugar, ou seja, no mesmo lugar-comum. 

Gilberto de Mello Kujawski, membro do Instituto Brasileiro de Filosofia, é autor, entre outros títulos, de Império e Terror (Ibrasa) E-mail: gmkuj@terra.com.br

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