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segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Quando comi um veado





Roberto Damatta

Entre o início dos anos 1960 e meados dos anos 1970, eu tive uma vida marcada pela tentativa de compreender sem julgar costumes e valores de povos tribais que, àquela época - como ainda hoje são - eram chamados de "índios", "gente da idade da pedra" ou "selvagens". Seres naturais, ignorantes e obviamente incompetentes para gerenciar o que possuem - acima de tudo, suas reservas tidas como enormes - quando os nossos latifúndios ficam a salvo, inclusive de discussão.


Mas voltando a essa existência na qual a minha subjetividade era a todo momento fragmentada pelas tentativas dela sair para buscar ver o mundo do ponto de vista de uma outra humanidade, pois o meu ponto de partida não era uma teoria racista-evolucionista que ainda persiste disfarçada numa doutrina política e econômica do desenvolvimentismo que continuava (e continua) a dividir as humanidades em atrasadas (ou primitivos) e adiantadas (ou civilizadas) - obviamente tecnológicas, libertárias e democráticas. No dia 28 de julho de 1970, uma terça-feira, saboreei um suculento bife de cervídeo - veado campeiro, vermelho ou galheiro - já não me lembro mais e minhas notas não falam disso.


Seria uma refeição normal (e maravilhosa para quem comia de menos e descobria os mistérios de passar fome) não fosse pela carne da caça apresentada como saborosa, procurada e exclusiva, oferecida como favor por um exímio caçador Apinayé, devedor de algumas miçangas que recebia de mim e distribuía na aldeia. A carne do veado substituía a de gado, mais rara de ser consumida naqueles tempos em que comer veado era como consumir Friboi.


Lembro-me de dois fatos marcantes dessa comida. O primeiro foi a presença de meu saudoso irmão Renato, renomado economista e glorioso velejador, vice-campeão, com Fernão e Mariozinho, nos Pan-Americanos de Winnipeg, no Canadá. Entre continuar economista e virar antropólogo, meu irmão decidiu pela primeira carreira. Hoje não tenho dúvidas de que foi muito melhor porque, como diz meu ilustre colega Marshall Sahlins, se Deus nos expulsou do Paraíso e castigou com o trabalho, ele, caritativo, nos deu os economistas que ditam como devemos viver.


Ao lado da política, o nosso patrimonialismo que se mascarou ideologicamente tornou-se imbatível contratando parentes, amigos e companheiros de partido e de ideais revolucionários - tudo isso em eventual economês ou politiquês messiânico-coalizativo em nome da tal governabilidade ou mera roubalheira nacionalista - esse racionalizador de quase todas as paradas.


Renato viajou comigo e logo percebeu as dificuldades de realizar operações econômicas entre os Apinayé. Num ensaio que escreveu sobre o assunto, viu que o investimento numa venda na aldeia, feita por um líder político, não promovia lucros porque quando as pessoas iam comprar elas não se definiam como consumidores (um papel impessoal e anônimo), mas como parentes. Em outras palavras, como o parentesco era a matriz cosmopolítica englobante, comprar a crédito ou fiado (na base da fé) impedia a cobrança, deixava descoberto o dono do negócio, bloqueado de reaver o seu investimento pela ética patrimonialista enraizada no ideal de reciprocidade do parentesco.


Meu irmão morreu, o dono da venda indígena (que foi um dos meus mais queridos instrutores) também partiu, mas o Brasil, que se acha moderno, continuou enjaulado nesse patrimonialismo da casa e da rua, dos de dentro e dos de fora, quando os ideais igualitários são canibalizados pelos elos e o tecido imenso de favores que ainda é o tapete no qual pisam quase todos nós e, é claro, os nossos irmãos, padrinhos e amigos - os políticos que, naturalmente, não vieram de Marte. Quem é o mais primitivo, quem come mais veados, quem mais ilegítima pela roubalheira amistosamente mais pornográfica: nós ou eles?


O segundo evento foi um acidente. No momento em que mordi um pedaço do veado, meu molar da arcada esquerda inferior topou com um pedacinho de osso e ali começou uma dor excruciante.


Do dia seguinte, cruzei o Tocantins deixando Goiás para Porto Franco, no Maranhão, de onde tomei um ônibus para Imperatriz. Lá, saí em busca de um dentista. Era como encontrar um diretor honesto na Petrobrás, mas finalmente fui examinado por um senhor atencioso. Honesto, ele foi logo me indicando que o tratamento seria doloroso e demorado e, nas minhas circunstâncias, inviável. Compreendi imediatamente o que queria dizer quando vi que a sua broca era de pedal porque Imperatriz tinha energia elétrica intermitente. No dia seguinte, dopado por aspirina, tomei um avião para Brasília onde arranquei, com a ajuda de Roque Laraia, o molar estragado pelo osso do veado. Hoje tenho um implante que, me asseguram, é como a desonestidade do governo petista, à prova de tudo.


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