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quarta-feira, 5 de março de 2014

Duas máscaras



ROBERTO DAMATTA - O Estado de S.Paulo

Quando converso com amigos, colegas e alunos sobre o ato de escrever, encontro uma clara distinção. Meus companheiros universitários não dizem apenas que escrevem: eles publicam.
E hoje, graças ao regime imposto ao mundo da pesquisa e do ensino superior, esse publicar é requerido e medido. Dependendo do órgão no qual se publica, o texto vale mais ou conta menos pontos para o autor e para o seu departamento, independentemente de seu, digamos com a devida vênia, valor intrínseco. Jornalistas registram mais do que todo mundo e pouco dizem: eu "publico". Eles escrevem.
Professores e pesquisadores, entretanto, falam com justo orgulho que publicam em revistas exclusivamente devotadas à ciência nos países que inventaram esse jeito de olhar o mundo, ainda que os seus ensaios sejam às vezes contra esse mundo. Curioso e pungente é ler um documento contra a acumulação capitalista ser preferencialmente publicado numa revista dos países que inventaram a poluição, o luxo e o lixo.
Deixando de lado essas pequenas contradições, dignas de uma Quarta-feira de Cinzas, vale acentuar as máscaras usadas no escrever e no publicar.
Posso falar disso porque conheço bem o seu feitio. Elas, de saída, chamam à memória o cisma Ocidental entre o popular e o erudito; o que seria geral e raso e o que seria exclusivo e denso.
A distinção radical entre o erudito e o popular chegou forte na minha consciência quando, estudante em Harvard e depois professor visitante na Universidade da Califórnia-Berkeley e Cambridge (Inglaterra), eu descobri o tratamento marginal dado à música comum e banal dos Gershwin, Cole Porter e Irving Berlim - e a centralidade das vertentes musicais clássicas, todas europeias.
A televisão ficava escondida e os seus programas populares eram falados somente entre os estudantes. Eram, como uma vez me disse um pomposo colega, professor de antropologia cultural de Berkeley: "Coisas do homem comum". Esse sujeito diferente de nós - ou melhor, "deles". Porque eu não distingo o popular do erudito. Aliás, eu penso que, em matéria de arte e pensamento, existem coisas boas e ruins, coisas claras e confusas.
Como estamos na pausa que inaugura o período que justifica a licença carnavalesca - essa Quaresma dada nas flores roxas que lembram a finitude e a morte -, lembrei-me dessas duas máscaras. A que visto quando publico um artigo acadêmico, cujo código demanda descoberta, erudição, contenção, resolução de um problema e o desejo de uma modesta eternidade; e quando escrevo a coluna do jornal. Um texto que demanda um outro tipo de disciplina - a da simplicidade, do transitório, do palpite e, às vezes, da insegurança.
Num caso, a recompensa é o reconhecimento e a referência obrigatória; no outro, o pagamento é um honorário, ou a menção ligeira de algum amigo num "gostei" ou simplesmente o "não li", o que nos dá uma medida da banalidade da vida que é, quem sabe, a função mais profunda dos jornais diários.
Quando "publiquei" ensaios acadêmicos pautado pelas teorias e dados de pesquisa, tentei fazer a "minha teoria" - a "contribuição", recebi como resposta a crítica feroz ou simplesmente arrogante. Descobri que a minha esforçada publicação conduzia à ignorância. Quando escrevo no jornal e uso a máscara do quase escritor, eu ganho uma liberdade carnavalesca. A que, como tudo na vida, sabe que tem começo e fim e vai mesmo embrulhar o peixe. Mas não me esqueço das máscaras do "publicar".
No meu caso, escrever para o jornal se parece com uma revelação. A máscara do publicar faz, por certo, o oposto. Na publicação acadêmica, o texto deve a si mesmo uma seriedade de tal ordem que pode torná-lo risível ou ridículo. No cronista, porém, a mistura de imaginação e realidade produz uma escrita obrigada a rir de si mesmo, porque seu autor sabe ser impossível inventar toda santa semana. O ensaio acadêmico, por sua vez, tem um leitor crítico e impaciente. A crônica, pelo contrário, pede pelo amor de Deus um leitor compassivo.
Essas escritas são críticas. Elas não se excluem. Alternam-se e têm muita sorte quem pode praticá
-las com o coração aberto.
A máscara risonha do carnaval é usada pelo escritor que deseja fazer rir. O riso se repete e a gente ri daquilo que é repetido mecanicamente, como mostrou Bergson. Já a máscara do texto acadêmico, um tanto mais trágico, corresponde ao uniforme dos mandões e dos moralistas ideológicos. Ela é parte da coroa de espinhos chamada de "discurso histórico" o qual, dizem os crentes, foi usado pelos heróis. O riso solicita compaixão e inclusão; o discurso desperta paixão e, Deus nos livre, paredão. Feliz cinzas.

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