José Nêumanne
Do Congresso
Nacional vêm vozes em alvoroço denunciando a “judicialização” da política na
democracia brasileira. Basta dar uma espiada no noticiário para perceber que a
queixa tem razão de ser. A questão é saber se isso é bom, ou não, para a
democracia. A princípio, não devia ser. Ao estilo americano do Estado
Democrático de Direito, na definição de seus inventores, os chamados Pais
Fundadores dos estados que se uniram para formar a jóia mais preciosa da coroa
britânica e depois lhe deram um pontapé no traseiro, o segredo da estabilidade
democrática é o equilíbrio dos checks and balances, controles e
contrapesos. Do outro lado do Atlântico, um francês, também herdeiro das
tradições de luta da Revolução que guilhotinou os reis, Montesquieu, teorizou
sobre a autonomia e o equilíbrio entre os três Poderes da República ideal: um
congresso de representantes da cidadania debatendo, votando e aprovando as
normas de conduta; uma equipe, também escolhida pela sociedade, para executar a
vontade do poulacho; e juízes togados que garantam a restrita execução de tais
cânones. Legislativo, Executivo, Judiciário, cada um na sua. “Judicialização” da
política significa no jargão parlamentar, juiz (o terceiro) metendo o bedelho na
gestão do Estado, assunto do segundo, e, em vez de só julgar a legalidade das
medidas, legislar, assunto do primeiro poder citado. A questão fundamental,
contudo, não é a restrita obediência às regras, mas a garantia de que direitos
de cidadãos serão preservados e seus deveres, cobrados. E isso ocorre quando o
Judiciário não intervém?
Não se trata de
adotar o velho brocado católico do “Roma locuta, causa finita” (o juiz bateu o
martelo, fim de papo). Trata-se, isso sim, de garantir a paz, a ordem e a
igualdade de direitos entre os cidadãos. Em 1988, os senhores congressistas se
reuniram e ergueram os pilares do marco democrático da Constituição, dita cidadã
pelo seu principal artífice, Ulysses Guimarães, presidente de tudo e avalista da
transição da ditadura abrandada para a democracia escancarada. O documento
definitivo, a chamada Carta Magna, deu aos funcionários públicos o direito de
pararem de trabalhar para obter melhores salários e condições mais decentes de
trabalho, em isonomia com os metalúrgicos das montadoras de automóveis e os
estivadores do cais. Desde então, passou meia dúzia de presidentes pelo trono
republicano, dois dos quais em mandatos longevos, e nenhum se aventurou a
desagradar os amanuenses da máquina pública para reforçar esse direito com a
enunciação de limites e obrigações. Tamanha ficou a bagunça que o Supremo
Tribunal Federal (STF) teve de descer das colinas romanas do Planalto Central
para evitar que o Zé Mané da esquina continuasse sendo achincalhado pelo barnabé
do guichê, que não faz greves, mas goza de férias, de acordo com sensata
definição do maior líder grevista da História e mais popular e hábil chefe de
governo republicano, Luiz Inácio Lula da Silva. Será condenável esse tipo de
“judicialização”? Duvidoso, não é mesmo? Mas, mesmo após o acórdão da Corte
Suprema, nem o Executivo se dispôs a usar o poder de sua maioria acachapante nem
o Congresso decidiu fazer valer a condição de que vive se arrogando de única
representação popular autêntica e direta. A precária (apesar de suprema) decisão
judiciária não foi até a tessitura destas linhas substituída pela necessária lei
que regulamente o direito dando-lhe mais força.
Exemplo mais
notório disso aí é o julgamento mais famoso e popularizado da história da mais
alta instância do Judiciário – o chamado mensalão. Dentro da tradição do “herói
da retirada”, flagrado por Hans Magnus Enzensberger e que ganhou o mundo no
romance de Javier Cercas, Anatomia de um instante, o advogado e
parlamentar Roberto Jefferson delatou a compra de apoio parlamentar com o
emprego de dinheiro público ou de empresas contratadas pelo Estado. Apesar de
denotar um dos mais graves defeitos do Judiciário, a lerdeza, pois o processo
levou sete anos para ser levado a julgamento (já na metade do mandato da
sucessora do presidente em cujo primeiro de dois mandatos o crime foi cometido),
o processo se notabilizou pelo desmanche de uma das práticas mais nefandas de
nossa democracia à brasileira: a prerrogativa que os políticos profissionais se
arrogam de não fazerem parte do universo de cidadãos iguais perante a lei.
Mandatários públicos do Executivo e do Judiciário (bem como dirigentes
partidários) sempre partiram do pressuposto de que têm direito a delinqüir,
embora, como agentes do Estado, o neguem aos sem-mandato. Deste ponto de vista,
sem querer aqui expor nenhum parti pris, o julgamento fez história, pois
esclareceu que o principal álibi dos acusados – o de que praticaram crime
contábil, negado a empresários, mas a eles permitido – não tem sentido ou nexo
nem pode merecer perdão. A condenação de altos dirigentes do partido no poder
federal ao longo de dez anos confirmou a inviolabilidade de um dos direitos
fundamentais da cidadania nas democracias dignas de tal denominação: a igualdade
de todos perante a lei.
No entanto, a
“judicialização” da política, de que o Judiciário tem sido acusado pelos
políticos dos dois outros Poderes da República, mormente nesse caso, tem
fragilidades evidentes. A indicação dos membros dos tribunais por executivos de
governos, embora eleitos pelo povo, comprometem a necessária imparcialidade do
poder que julga. E não há no horizonte soluções perfeitas para a resolução desse
impasse.
De outro lado, a
cristalização de falsos direitos, como a liberação da delinquência aos autores
das leis que a definem continua representando um risco, não apenas ao equilíbrio
e à independência dos poderes, mas principalmente à garantia do respeito aos
direitos do cidadão. O divórcio entre Nação e Estado sabota o exercício da
democracia fortalecendo uma espécie de “neofeudalismo”, no qual os
representantes do povo e os escolhidos por este para exercerem o poder em seu
nome e na defesa de seus interesses e direitos comportam-se como senhores de
baraço e cutelo tratando a patuleia na planície dentro das limitações da
vassalagem.
Difícil é o
papel do Judiciário, minado internamente pelos próprios defeitos (privilégios de
classe, corrupção e lerdeza, principalmente), de assegurar ao homem comum o
status de cidadão, e não de súdito. No panorama atual das instituições
brasileiras, contudo, o que tem assegurado o mínimo de poder real à sociedade
não representada no Parlamento e desrespeitada pelo Executivo é, muito mais do
que a harmonia tida como ideal, a permanente tensão entre os Poderes. Só esta
permitirá que os “heróis da retirada”, na prática benigna da “ética da traição”,
tragam a baila novos processos que provoquem rachaduras no poder monolítico do
Leviatã estatal pela garantia dos direitos inalienáveis dos cidadãos, sejam
estes contribuintes ou não.
José Nêumanne é
articulista do jornal O Estado de S. Paulo e comentarista do Sistema
Brasileiro de Televisão (SBT) e da Rádio Jovem Pan
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