José Nêumanne
Dilma reduziu
nossa História a 10 anos e o papa lhe respondeu com 20 séculos de
sabedoria
Em nome da fé já
se fez muito bem. Mas também muito mal. Do ponto de vista religioso, a mesma
Igreja Católica em que militou o inquisidor Torquemada deu os dois Franciscos –
o santo de Assis e o bispo de Roma. A política (do grego, pertinente aos
cidadãos) republicana (do latim, referente à coisa pública) foi o ofício do
assassino serial Adolf Hitler e do democrata (do grego, governo do povo) Winston
Churchill. Então, não é a crença que massacra o homem, mas a natureza humana que
usa a convicção para destruir. O fundamentalismo terrorista dos asseclas de Bin
Laden é mais próximo dos autos de fé da Inquisição cristã que da tolerância dos
Estados islâmicos medievais.
A visita do papa
ao Brasil confirmou tais evidências em gestos e nas suas pregações ao longo da
semana passada. Nela ele conviveu com a ineficiência do Estado, manifestada pelo
rosário de lambanças iniciado com o erro dos batedores em sua chegada e
encerrada com a interdição do Campo da Fé, em Guaratiba. E também com o afeto
emocionado do brasileiro comum, que o recebeu, abraçou e beijou. Ao desembarcar
do avião, forçado a fazer hora voando antes de pousar porque a presidente Dilma
se atrasou, ele foi conduzido por batedores direto para o congestionamento de um
estacionamento de ônibus de peregrinos em plena Avenida Presidente Vargas. Do
contato com o Brasil real saiu sem um arranhão e coberto de beijos, prova de que
só o amor protege. Dali o levaram para encontrar a zelite do Brasil
oficial no Palácio Guanabara – um erro dos hierarcas católicos, similar ao dos
responsáveis por sua escolta.
Os encarregados
da programação submeteram o papa a um discurso quase tão grosseiro quanto
enfadonho. Nele Dilma se limitou a fazer mais um relato complacente e pouco fiel
de falsos avanços de sua gestão. E deu-se ao desplante de reduzir a História do
Brasil aos últimos dez anos, sob o PT de Lula e dela. Ou seja, negou o legado de
luminares do povo brasileiro que viveram antes da posse do padrinho e protetor
dela: José Bonifácio de Andrada e Silva, Machado de Assis, Euclides da Cunha,
Gilberto Freyre, Luiz Gonzaga, Tom Jobim e tantos outros. Além disso, ela
recitou patranhas de marketing, tratando o visitante como um papagaio de pirata
de seu palanque para a reeleição. Nem ela própria parecia crer nelas, tal foi a
falta de convicção com que as enunciou.
Naquela ocasião
o hóspede, polido como a anfitriã não foi, respondeu com as gentilezas de praxe
de um pároco agradecendo a água que lhe servia uma devota paroquiana. Mas, ao
longo de suas práticas, foi respondendo com recados certeiros a uma a uma dessas
grosserias da recepção e das deselegantes anedotas sem graça sobre sua origem
portenha contadas pelo prefeito do Rio, Eduardo Paes. No Hospital São Francisco
de Assis o papa detonou o discurso politicamente correto de quem considera o
consumo de drogas apenas uma doença e seu comércio, mera consequência de mazelas
sociais. Chamou os traficantes de “mercadores da morte” e disse que só se
combate o tráfico entre os jovens praticando a justiça e educando
sempre.
No mais
relevante pronunciamento social de seu pontificado, proferido na favela de
Varginha, ele disparou dois torpedos diretamente na maior negação à natureza
democrática nas Repúblicas de hoje: o marketing político. No primeiro atacou o
conceito de pacificação das comunidades com a ocupação de suas ruas por
policiais armados. “Nenhum esforço de pacificação será duradouro, não haverá
harmonia e felicidade para uma sociedade que ignora, que deixa à margem, que
abandona na periferia parte de si mesma. Uma sociedade assim simplesmente
empobrece a si mesma, perde algo de essencial para si mesma”, pontificou. Essa
sentença profética atingiu no cerne a propaganda oficial do desastrado
governador Sérgio Cabral.
O outro torpedo
atingiu a empáfia petista no peito. “Somente quando se é capaz de compartilhar é
que se enriquece de verdade. Tudo aquilo que se compartilha se multiplica. A
medida da grandeza de uma sociedade é dada pelo modo como esta trata os mais
necessitados, que não têm outra coisa senão a sua pobreza”, pregou. O nobre
conceito igualitário, transmitido às vítimas preferenciais dessa ilusão,
silencia a fanfarra federal que celebra a inclusão deste país entre as maiores
economias mundiais.
Ao falar para a
sociedade e políticos, no Teatro Municipal, Francisco sintetizou sua pregação na
Jornada Mundial da Juventude no Rio: “O futuro exige a tarefa de reabilitar a
política”. A frase do pregador resume a tarefa de todos os cidadãos, pertençam
ou não a quaisquer partidos políticos, professem ou não algum credo religioso.
Da mesma forma corajosa como apregoa a refundação de sua “Igreja de Cristo”,
Francisco transferiu aos peregrinos a tarefa de lutar para tentar restaurar o
sentido da origem etimológica da palavra, que no mundo inteiro, e no Brasil em
particular, passou a significar exatamente o oposto do princípio que a
fundou.
Essa restauração
do poder da cidadania, segundo o papa, implica condições que ele fez questão de
lembrar. Uma delas é a responsabilidade cívica da boa-fé pública: “O sentido
ético aparece nos nossos dias como desafio histórico sem precedentes”. Outra, a
tolerância em tudo e, particularmente, na profissão de fé: “Favorável à pacífica
convivência entre religiões diversas é a laicidade do Estado”. A economia com
visão humanista é mais um item: “O futuro exige visão humanista da economia,
evitando elitismos e erradicando a pobreza”. E isso só pode ser feito com o
respeito a ideias e posturas alheias: “Entre a indiferença egoísta e o protesto
violento, há uma opção sempre possível – o diálogo”.
Francisco
prometeu voltar em 2017. Deus queira que até lá as sementes luminosas que semeou
tenham germinado aqui.
Jornalista,
poeta e escritor.
(Publicado na
Pag.A02 do Estado de S. Paulo de quarta-feira 31 de julho de
2013)
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