José
Nêumanne
Está valendo a
paródia da frase de Bernardes: “ao político, tudo; ao cidadão, o rigor da
lei”
Ao decidir que o
Instituto Chico Mendes não podia existir legalmente por ter sido criado por lei
baseada em medida provisória (MP) que havia transitado pelo Congresso sem
obediência à premissa, prevista na ordem jurídica vigente no País, de passar por
comissão especializada antes de ir ao plenário, o Supremo Tribunal Federal (STF)
cumpriu sua tarefa comezinha de julgar o que é constitucional ou não. E nessa
condição estão todos os efeitos jurídicos e práticos de cerca de 500 MPs
vigentes e ilegítimas. Ao recuar da decisão tomada no dia anterior, consciente
de que, embora acertada, a jurisprudência poderia criar um caos jurídico sem
precedentes na História da República, o órgão máximo do Poder Judiciário mostrou
equilíbrio, sensatez e humildade, três virtudes políticas que faltam ao
Executivo e ao Legislativo, cujos representantes são... políticos eleitos pelo
povo.
Mas o STF não
tinha alternativa à decisão que tomou de restabelecer o primado legal que havia
sido abandonado por parlamentares e presidentes que, mesmo redigindo, votando,
promulgando e assinando leis ou decretos, não podem descumprir cânones neles
fixados. Deu, então, prazo de 14 dias para uma comissão especial composta por
senadores e deputados analisar antes de encaminhar à votação final a providência
administrativa que o governo federal considere urgente e de alta relevância e
Câmara e Senado com isso concordem. Com a insensibilidade de ofício, o
presidente da Câmara, Marco Maia (PT-RS), teve o desplante de reclamar da
insuficiência desse prazo, apelando para o débil argumento de que questões
políticas postas em confronto na votação das medidas exigem prazo mais longo. “O
Supremo não pode se meter nesse assunto”, disse o ex-líder do governo na Câmara,
Cândido Vaccarezza (PT-SP).
A política, tal
como praticada no Brasil, é a arte de submeter os fatos aos argumentos. Então,
sempre que algum prócer parlamentar ou executivo quer mandar a realidade às
favas, convém recorrer à História para restabelecer a verdade. As medidas
provisórias são uma tecnologia parlamentar criada para amenizar um velho impasse
entre gestão e negociação, comum em qualquer democracia, mas mais acirrado em
sistemas parlamentares, em que cabe ao Parlamento gerir o interesse
público.
Em princípio,
ela foi acrescentada à Constituição como fórmula para permitir a instituição do
parlamentarismo, alheio à tradição presidencialista da condução dos negócios
públicos no Brasil. Os mandachuvas da Constituinte eram parlamentaristas e a
Carta foi encaminhada no sentido de permitir um sistema de governo que tornasse
viável a substituição do estilo americano pelo europeu. No meio do caminho,
contudo, tinha uma pedra no sapato parlamentarista e esse mineral se tornou
maior do que o calçado. Convicto de que a guinada do sistema de governo lhe
furtaria mais poder para transferi-lo a Ulysses Guimarães, o então presidente
José Sarney submeteu a Constituinte ao tacão do velho presidencialismo
monárquico, adotando-o explicitamente.
Na prática,
preparada para o parlamentarismo, mas entregue ao poder presidencial, a
Constituição de 1988 permitiu a proliferação dos partidos e tolheu o poder do
voto do cidadão: este só tem controle real sobre a escolha de seu representante
nas eleições majoritárias para cargos executivos. A mixórdia do voto
proporcional instala a confusão federativa, ao alterar o peso do voto da
cidadania pelo conceito inverso na composição da Câmara, jogando no lixo o
próprio princípio da representatividade. A representação do Estado menor é maior
do que a do Estado maior, proporcionalmente, anulando o conceito elementar da
democracia saxônica, de acordo com o qual cada cidadão tem direito a um
voto.
A composição da
Câmara dos Deputados foge ao controle do cidadão e é entregue de bandeja às
oligarquias partidárias, que recriaram o velho esquema do coronelismo da
República Velha se aproveitando dessa cusparada em Pitágoras e Aristóteles, pois
em nosso sistema o mais vale menos e o menos vale mais. O neocoronelismo do voto
eletrônico, instituído no Poder Legislativo tornado Constituinte, inventou o
conceito cínico da governabilidade. Segundo este, o presidente eleito pela
maioria real submete-se ao tacão dos oligarcas partidários: só lhe é permitido
governar se fatiar a máquina pública e distribuir as porções da carniça às
legendas cuja legitimidade como representação popular é, na prática, nula. Por
isso estamos sob a égide de uma paródia do antigo axioma de Artur Bernardes: “Ao
político, tudo; ao cidadão, o rigor da lei”.
As medidas
provisórias são o pacto do poder constituído no dilema entre o voto majoritário
e o sufrágio desigual. Para governar o Executivo finge que tudo é “urgente e
relevante” e encaminha ao Legislativo o que lhe convém, certo de que será
aprovado em nome dos interesses do povo, que nunca chegou a ser cheirado nem
ouvido. O Legislativo recheia a vontade imperial do governo central com a
escumalha dos interesses paroquiais dos chefetes das miríades de bancadas e,
como dizia Justo Veríssimo, “o povo que se exploda”.
Os rompantes de
Marco Maia e Cândido Vaccarezza sobre a única saída decente que restou ao STF
adotar para descascar o abacaxi comprovam que, em nossa ordem vigente, na qual
se trata a Constituição como subalterna ao regimento da Câmara, os barões dos
partidos acham que têm a prerrogativa de cuspir nas normas que eles próprios
redigiram, votaram a aprovaram. A cínica substituição da letra da lei pelo pacto
tácito entre políticos, por eles decretada dos lugares mais altos do pódio da
representação popular, é o maior chute no traseiro que uma Constituição levou em
nossa História. Nem os plantonistas no poder do Almanaque do Exército haviam
chegado a esse ponto. Se nem essa resolução do STF for cumprida, só nos resta
passar unguento na contusão e chorar.
Jornalista,
escritor e editorialista do Jornal da Tarde
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