Roberto DaMatta
Estava quase desistindo porque o meu enorme esforço não
produzia resultados - ou melhor, produzia somente ganhos marginais, como
se diz em economês, essa língua do nosso deserto mundo. Eu me agitava
com o máximo de energia, embora o velho corpo não respondesse. Bem na
minha frente, ela estava perplexa e me olhava aguardando o sinal das
miragens que prenunciam o oásis. O tal oásis que não vinha.
Eu não estava nervoso quando sondei a dimensão da tarefa e comecei o
movimento repetitivo que levaria ao oásis indicado no meu mapa - uma
velha, bolorenta e inconfiável carta topográfica. Ademais, eu seguia os
preceitos dos peregrinos aprendidos com os velhos líderes de caravanas
acostumadas a cruzar o deserto quando estive no Cairo, Egito, graças a
um seminário devotado a discutir uma tão necessitada "Antropologia da
Angústia".
- Só depois de estar com o corpo cheio de energia é que o beduíno usa
com ousadia o seu cajado, sem o qual não se anda no deserto. Até
atingir esse estágio, o peregrino deve evitar usar o bordão
furiosamente, pois nada substitui uma consciente timidez.
- Mas o cajado não representa o caminhante?, indaguei eu dando um pequeno gole no meu chá de menta.
- Claro! Mas lembre-se de que tudo o que representa o corpo pode
sabotá-lo. A voz aponta a falsidade nas mais fervorosas preces a Alá ou o
futuro adultério numa declaração de amor. As mãos tremem ao assinar um
contrato matrimonial com 200 virgens, como ocorreu com o Sheik
árabe-germânico Waltzer Zinder Ben-Hur, quando ele vislumbrou as
delícias que o esperavam sorrindo por trás das vendas que separam
fantasia e realidade. O mesmo ocorre com a parte mais importante do
corpo, pois seu fracasso faz surgir a pusilânime hiena dentro do homem!
Essas palavras, ouvidas há décadas, martelavam minha cabeça na fase
do aquecimento. Um pouco aqui, menos ali, muito (mas sem exagero) acolá.
Eu mobilizava meu corpo parceladamente e, na medida em que ganhava
confiança, as pernas e coxas davam-me um apoio crucial.
Mas o tempo passava e a engrenagem que levaria ao oásis não afinava. A
alma, essa entidade ilimitada que se imagina perto de Deus e pode estar
em todos os lugares, ensaiou abandonar-me. Nos seus anseios tão
incontroláveis quanto uma sinfonia de Beethoven, ela iniciou uma
tremenda e insidiosa ventania de pensamentos. Primeiro, lembrou-me que
aquela movimentação era ultrajante. Não estaria eu querendo oásis em
excesso?
Em seguida, começou a relampejar lembranças intrusivas do tipo: não
era melhor estar lendo um livro na quietude da minha varanda? Que tal
uma boa conversa com o amigo escocês Joãozinho Caminhador: aquele que
tudo ouve e nada diz? Não seria um grave pecado, insistia a alma, querer
chegar ao oásis para se refastelar no fundo poço das suas endorfinas,
comer as suas tâmaras e passas, quando tudo isso havia sido feito ainda
ontem, com o requinte de saborear no fim um assado de pernil de
cordeiro, devorado à Herodes?
Tais sinais da mais torpe traição promoviam fraqueza no meu corpo. A
alma sabotava, o denodado corpo insistia. Continuar era um pecado e
prosseguir, um ato de coragem. Eis a triste situação em que me
encontrava. Um paradoxo comum entre nós, humanos e vazios de
programação, incertos de quem somos e inseguros sobres os nossos
limites.
- Veja, berravam valentemente minhas pernas, mais uns minutos e você
chega lá. Note como o cajado está firme. Não abandone o navio: isto não é
cruzeiro, é Cruzada!
Como um primeiro sintoma de uma possível pane, porém, senti que o
bordão começava a pesar. A alma sugeriu parti-lo em dois. Mas, ajudado
pelos braços, dei ao bastão mais uma oportunidade, porque o meu
cronômetro indicava nove minutos e eu sabia que em dez ou onze eu
chegaria lá.
Continuei em movimento e, num ato de desespero, dei tudo o que tinha,
embora estivesse ouvindo as gargalhadas da alma que, pairando por cima
da situação, projetava imagens dos vexames que meu corpo havia
provocado. A pedra que, jogada para o alto, caiu na minha cabeça,
valendo-me três dolorosos pontos; o porre de Cuba Libre tomado na festa
de aniversário da irmã do Naninho que me fez sentar no meio fio; a
vomitada nas costas do engenheiro amigo do meu pai durante uma viajem de
Juiz de Fora a Porto Novo do Cunha, depois de comer arroz, feijão,
farofa de ovo e bife com fritas; a gota d'água que eu penso ter engolido
na manhã da minha primeira comunhão...
Perto do desespero, falei baixinho: tudo que tem começo termina. E
num esforço supremo e dando tudo de mim, consegui chegar ao oásis. Corri
5 quilômetros em 35 minutos! A moça, cujos olhos duvidavam da minha
capacidade, claudicava na sua máquina e, pelo visto, não iria chegar a
nenhum oásis. Eu, pelo contrário, descia orgulhoso da minha esteira
desértica para receber, nas costas molhadas de suor, um tapinha do
Guilherme, meu personal trainer e xamã.
Era mais uma derrota vitoriosa da alma com o corpo e do corpo com a alma.
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