Sempre ouvimos falar da 'subclasse’: agora, seu oposto – uma elite de super-ricos igualmente apartada do restante das pessoas – está dando as cartas no debate político.
Peter Oborne
Quando líder dos trabalhistas, Ed Miliband, falou em seu discurso em setembro sobre a necessidade de uma modalidade de capitalismo mais justa e humana, foi alvo de escárnio e zombaria gerais. Mas, quatro meses depois, todos os principais políticos britânicos tentam desesperadamente seguir a orientação de Miliband. O que constituiu uma sociedade justa deixou de ser assunto apenas de teóricos acadêmicos. Tornou-se, de repente, o assunto mais importante da política.
O motivo é simples: a crescente repulsa pública contra uma nova classe de super-ricos que parece imune às restrições que recaem sobre as pessoas comuns. Grandes banqueiros, ricaços detentores de ações de empresas e administradores de fundos parecem apartados do resto das pessoas. Eles frequentemente pagam pouco ou nada de imposto, vivem em fortalezas fortemente vigiadas e protegidas, e alguns têm poucos ou nenhum elo real com a Grã Bretanha. A origem de suas fortunas é geralmente um mistério e parece não ter relação com o mérito. Esses ricos selvagens representam, ao modo deles, tanto perigo para a sociedade quanto os arruaceiros que furtaram e pilharam pelas ruas de Londres em agosto passado.
Os contribuintes gastaram £60 bilhões (US$ 94 bilhões) para salvar os banqueiros da quebra. Mesmo assim, em vez de mostrar arrependimento ou gratidão, esses banqueiros continuam remunerando a si mesmos com salários multimilionários, quantias inimagináveis para a maioria das pessoas.
A injustiça salta aos olhos – ainda mais nesta época de austeridade nacional crescente, quando o padrão de vida da maioria está em queda, e o desemprego, em alta. Não é de surpreender que, esta semana, David Cameron – que adora dizer que “nós estamos todos no mesmo barco” – entrou no debate com um discurso no qual tentava definir o que ele chama de “capitalismo responsável”. Ele percebe que essa questão deixa a direita bastante vulnerável, como o prova a experiência de Mitt Romney, o candidato Republicano na dianteira da disputa à candidatura à presidência dos Estados Unidos.
Romney tem uma fortuna calculada em cerca de US$250 milhões, obtida por meio de engenharia financeira e participações acionárias, embora beneficiado por isenções tributárias, durante sua atuação como homem de negócios. Ele pagou, segundo suas declarações de renda, 15% de impostos sobre seus ganhos – um porcentual consideravelmente inferior ao que é pago pela maioria dos americanos.
Para alguns, isso faz de Mitt Romney um herói – mas para muitos outros, citando aqui a emblemática frase do historiador Niall Ferguson, ele é mais um a “personificar a divisão entre a América pobre e a América rica”.
Mais ainda que o Reino Unido, os Estados Unidos veem o surgimento de uma “superclasse” arrogante e devastadora de super-ricos. Os economistas dizem que os super-ricos dos Estados Unidos são hoje sete vezes mais ricos do que há 30 anos. O problema é que esse enorme aumento de riqueza e poder deram-se à custa dos demais cidadãos. Estatísticas revelam que a renda média do trabalhador do sexo masculino nos Estados Unidos vem caindo desde os anos 1970.
Essa aguda desigualdade de distribuição da riqueza está aliada a um fenômeno ainda mais grave: os ideais dos descobridores da América foram desvirtuados, pois a divisão de classes nos Estados Unidos se ampliou mais do que o observado no período Vitoriano da Grã Bretanha. A mobilidade social está passando por um processo de estancamento, como o sociólogo americano Charles Murray mostrou em um brilhante novo livro, Coming Apart (Separando-se).
Murray mostra como a nova classe alta dos Estados Unidos, que ele rotula como “elite cognitiva”, desenvolveu uma espécie de domínio hereditário das profissões e cargos de direção mais importantes. As pessoas mais bem-sucedidas procuram se casar com outras na mesma situação, e garantir que seus descendentes frequentem as melhores escolas e universidades, e isso faz com que, citando Murray: “Os pais pertencentes à classe média-alta gerem uma parcela desproporcional das crianças com melhores estudos.”
Os membros dessas famílias abastadas então se casam e se relacionam entre si, moram nos mesmos bairros, criando um fenômeno que Murray chama de “super zips” – os 800 códigos postais (ZIP, ou CEP) mais ricos e desejados dos Estados Unidos, onde estão reunidos os mais ricos e com melhores estudos, espertos. Estes endereços exclusivos, chiques são para a América do século 21 o que Versailles foi para a França do século18 – um sinal claro de um sistema de sociedade esclerosado, e da decadência em longo prazo.
Murray argumenta que o surgimento dessa elite “hereditária” destruiu os laços da sociedade americana. Uma parte fundamental do mito americano era a ideia de que qualquer criança, não obstante quão pobre e desfavorecida, poderia ascender social e economicamente até o topo. Mas os caminhos para essa ascensão estão sendo fechados.
Isso se deve apenas em parte ao fato de a nova elite ter tomado conta dos melhores empregos e vagas nas boas universidades. De modo ainda mais insidioso, o sonho americano está sendo destruído pela falta de ética nas relações trabalhistas, aliada à perda da confiança e à decadência dos valores familiares nas classes mais baixas. Meio século atrás, os jovens eram incentivados a sair da pobreza pela ambição e trabalho árduo; agora eles sobrevivem no desamparo, com a ajuda estatal.
E a Grã Bretanha frequentemente segue o trajeto da América. Algumas regiões da Grã Bretanha – Kensington, Chelsea, parte de Oxfordshire e Gloucestershire – já se tornaram enclaves exclusivos de super-ricos, que têm na Grã Bretanha muito mais um playground do que um lar. Ao contrário do restante da população, essa casta privilegiada não depende do Estado para ter acesso a escolas, hospitais ou bem-estar.
“Os únicos momentos em que faço uso dos serviços públicos”, disse um financista dono de uma fortuna estimada em 500 milhões de libras num recente relato, “é quando meu motorista dirige por ruas e estradas públicas da cidade até minha propriedade no campo”. E completou: “Eu não gosto disso, mas não tenho como evitá-lo”.
Entretanto, assim como os Estados Unidos, a Grã Bretanha tem também de conviver com uma classe dependente e às vezes criminosa de necessitados. O perverso sistema tributário desenhado pelo ex-premiê Gordon Brown deu a entender que o trabalho não compensa, levando milhões de pessoas a uma vida indolente e à baixa autoestima. Os distúrbios do ano passado são uma das consequências desse sistema imoral.
Há um terrível paralelo aqui. Entre os integrantes de ambas as classes, a dos super-ricos – a “superclasse” – e os muito pobres – a “subclasse” – as noções de responsabilidade, dever, patriotismo e boa vizinhança foram aniquiladas. Ambos, pobres e ricos estão passando a ter vidas completamente isoladas do restante da sociedade. E entre estes dois está o grupo que Ed Miliband batizou como “a classe média espremida” – a parte da sociedade que paga impostos, não trapaceia, e procura sempre agir corretamente –, tida como favas contadas pelos políticos britânicos.
É óbvio já há anos que há algo muito errado, embora tenham sido necessários fatos como os distúrbios do verão passado e o impacto da recessão para o problema vir à tona.
O problema é especialmente sério para David Cameron porque sua credibilidade política depende de uma solução para ele. Ele próprio, embora guiado por um nobre senso de espírito público, é também produto do equivalente britânico da elite dourada de Charles Murray. Talvez essa seja uma das razões pelas quais ele tem se mostrado tão hesitante em enfrentar essa divisão cada vez maior da sociedade Britânica.
Justiça se faça ao primeiro-ministro, ele não poupou esforços para enfrentar a questão em um recente discurso. Ele, apropriadamente, defendeu o capitalismo como sendo o melhor sistema econômico que já existiu, ao mesmo tempo em que condenou os abusos que o têm levado a esse descrédito. Mas o problema de Cameron é que ele está no poder há quase dois anos, e alguns destes mesmos abusos ocorreram sob seus olhos, como o pagamento de altos salários e bônus a gente dos bancos estatais Lloyds e RBS.
O problema de Ed Miliband é outro. Ele não pode condenar o capitalismo de compadrio sem atingir o New Labour ou enfurecer os blairistas, cujo sistema de governo foi baseado em uma série de alianças com milionários e ricaços donos de participações acionárias.
Acima de tudo, ambos os líderes de partidos estão diante de uma charada. Os dois apóiam o que eles chamam de capitalismo “moral”, que premia o trabalho árduo e a dedicação, beneficiando a maioria, e não apenas uma minoria. Mas ocorre que eles estão também determinados a combater os abusos.
Ambos concordam que é correto pessoas que amealharam fortunas com o trabalho árduo – como a escritora JK Rowling, de Harry Potter, e outras – as mantenham. A questão é como criar um conjunto de regras que permitam isto ao mesmo tempo em que castigam os gananciosos e predadores. Nenhum líder mundial chegou perto de apontar a resposta.
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