No Brasil a palavra emergência é um desses vocábulos com
muitos sentidos, quase todos reveladores da dimensão mais profunda da
atmosfera local. Dou um exemplo: se um inglês grita "help!", ele é
imediatamente socorrido. Se uma companhia aérea americana, pequena ou
grande, recebe um pedido de passagem numa "emergency" - isso já ocorreu
comigo -, o lugar vai ser obtido. Palavras como socorro, perigo, ajuda,
emergência e expressões como vida ou morte têm o poder de suspender as
rotinas diárias e deflagram atitudes condizentes. O atendimento e a
atenção têm de ser imediatos.
No Brasil, elas dizem o mesmo, mas depende de quem está do lado de cá
(como vítima ou doente) ou do lado de lá da porta do hospital ou do
balcão de atendimento. Entre nós existem mediações e tudo depende do
"caso" - e o "caso", conforme sabemos, mas não discutimos, tem a ver com
conceitos tipicamente brasileiros como "a pinta", "a cara", "o jeito" -
a tal aparência. O modo pelo qual a vítima ou o doente é socialmente
classificado.
Em todos os encontros impessoais no Brasil, o modo de falar, o tom de
voz, o porte, a roupa, a cor da pele, a gesticulação, o cabelo e o
penteado, os adereços, o andar e até mesmo o grau e limpeza, o cheiro, o
relógio ou o anel - com maior ou menor peso, mas com a cor da pele,
sejamos sinceros, sendo muito importante - são peças básicas no
acolhimento ou na rejeição de uma emergência. Acostumados a ver as
pessoas situando-as apenas como inferiores ou superiores e jamais como
iguais, as emergências e os socorros (esses momentos que nos igualam
como seres mortais e capazes de serem ofendidos, feridos e socorridos)
passam numa primeira instância a "saber quem é a vítima" para, em
seguida, dar-lhe atenção ou desamparo.
Donde, o antipático, mas preventivo "Você sabe com quem está
falando?" diante de balcões de repartições públicas, hospitais e postos
de saúde. Nas emergências, tendemos a seguir a mesma lógica das tramoias
políticas. Diante da suspeita de crime ou, como diz a presidente, do
"malfeito" procuramos primeiro saber quem é para depois demitir,
indiciar ou blindar! Embora, como estamos fartos de saber, o bom senso
quase sempre demande providências imediatas.
Fala-se muito em cidadania, mas o fato é que esse papel continua
sendo dependente de quem o desempenha. Se for nosso, recebe a blindagem
que o torna superior às leis e fica dispensado dos socorros; se for
pessoa comum, entra nas emergências. Esses atendimentos que, com ou sem
plano de saúde, podem levar ao cemitério independentemente de qualquer
circunstâncias.
Pois "socorro" e "emergência" são palavras que em todo lugar, exceto no Brasil, têm a força de suspender as circunstâncias.
* * * *
Em maio do ano passado tive um mal-estar e descobri, depois de uma
consulta de emergência, que estava com uma crise de vesícula. Tinha que
extirpá-la o mais rapidamente possível, o que fiz dois dias depois.
Passei, assim, pela famosa cadeia medicinal deflagrada pelo estado de
emergência, que vai do atendimento imediato ao diagnóstico; passando
pela intervenção, recuperação e retorno à vida normal.
Mas esse processo só foi feliz porque durante todo o tempo eu tive a
sorte e o privilégio de estar acompanhado por médicos amigos. Recebi,
desse modo, não só a competência da sabedoria médica habitual, mas uma
decisiva e grata atenção. Eu pago caro por um plano de saúde, mas mesmo
em plena crise, eu demorei mais ou menos seis horas para ser internado
num grande hospital de Niterói porque o plano fala em Rio de Janeiro e
Niterói é nele classificado como leste fluminense! Quer dizer, a
contiguidade entre o Rio de Janeiro e Niterói sumiu porque o plano de
saúde comporta um detalhe burocrático típico do moderno brasileiro.
Esperei, mas comigo esperou a equipe médica, até que as tramas do plano
fossem resolvidas e deixassem passar o doente.
O fato concreto é que cheguei ao hospital às 9 da manhã e só fui
operado às 6 da tarde, depois de uma troca interminável de mensagens e
telefonemas entre Rio e Niterói. Felizmente tudo deu certo. Mas e se eu
fosse - digamos, como hipótese - um negro desconhecido e educado na boa
norma da igualdade que abomina o "Você sabe com quem está falando?", que
recria a desigualdade, onde deveria reinar uma equidade plena, mas
devidamente enfartado? Em caso afirmativo, eu estaria escrevendo esta
crônica no outro mundo.
* * * *
É preciso rever as condutas que tipificam o espaço público
brasileiro, sobretudo no que diz respeito a emergências. Não cabe, numa
democracia e num governo voltado para a justiça social e para o povo
pobre, nenhuma desculpa que acaba incidindo sobre detalhes legais e que,
no final, tentam demonstrar que o doente vitimou-se a si próprio. O
caso da trágica morte do sr. Duvanier Paiva Ferreira, secretário de um
ministério voltado justamente para os recursos humanos, e uma agência de
saúde é exemplar. Primeiro, porque não houve o famoso "Você sabe quem
está falando?"; depois, porque a vítima era um negro importante. Será
que em todos os atendimentos os doentes devem fazer um escarcéu?
O socorro e a emergência não podem admitir demoras, desculpas e,
sobretudo, esse detestável legalismo nacional que trava o mundo (e a
vida) em nome de uma serenidade jurídica que simplesmente não deve
existir nas crises de saúde e jamais podem prevalecer na batalha entre a
vida e a morte! Bem faz a presidente Dilma em mandar averiguar o caso.
Melhor ainda seria interferir, com uma maior consciência sociológica,
nos protocolos dos atendimentos emergenciais.
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