Roberto DaMatta
Ao tentar fazer minha memória falar, seguindo o exemplo
de Vladimir Nabokov do Speak, Memory - uma das mais belas narrativas que
li em minha vida -, ouço o seguinte:
- Robertinho é canhoto!
Foi como canhoto que eu comecei a atuar no mundo. E o meu problema
era saber a natureza daquele qualificativo. Logo descobri que ser
canhoto era ser errado. Nada perturba tanto quanto ser diferente e, na
maioria dos casos, ser diferente para menos. O ser diferente e o ser
igual é o problema. Pois todos somos feitos de semelhanças e diferenças e
sabemos que crescer é aprender esse complicado diálogo entre o que nos
iguala e o que nos diferencia. Ficou uma lembrança: eu era tão
radicalmente canhoto que podia escrever como o grande Leonardo da Vinci,
da esquerda para a direita. Quem me guiava no mundo, arrumando-o e
construindo-o, o meu lado e a minha mão esquerda. Confirmei que ser
canhoto era ser errado porque a professora me obrigava a escrever com a
mão direita. Essa direita dos politicamente corretos e 'bem resolvidos',
que foi a minha primeira inimiga neste mundo.
Foi essa polaridade entre as mãos, cujo intenso simbolismo estudei
depois num texto clássico de Robert Hertz, quem primeiro sinalizou como o
corpo falava mais alto do que alma e com ela lutava.
* * * *
As oposições são simplificadoras. Não resolvem, mas - como dizia
Lévi-Strauss - são saborosas para pensar. Sem elas, não há orientação,
conforme descobri ainda menino quando ia pegar alguma coisa e um olho
interno me via e dizia que eu estava usando a mão torta. A mão do
coração e não a da cabeça.
Faz, pois, parte do meu aprendizado que o corpo e alma batalham.
Muitos amigos não viveram tal luta. Os que eu mais invejava eram os que
aparentemente só tinham alma e - é claro - escreviam com a mão direita.
* * * *
Homem feito, aprendi que o corpo era mais confiável do que a alma.
Tal como a minha mão esquerda é, até hoje, muito mais garantida do que
todo o meu lado direito. Como esses nossos políticos especializados em
enchentes, sou muito mais confiável pelo lado esquerdo ou errado do que
pelo meu lado direito e correto.
A prática esportiva e uma tentativa de construir uma estante, bem
como tantas outras coisas, me mostraram como o corpo não permite o abuso
ou o erro. Que falem os meus eventuais excessos com o mero e mortal
álcool; que o digam os meus planos de estudar a noite toda; que
testemunhem os meus pigarros carregados de nicotina quando eu abusava do
fumo. E que confirme tudo isso as vezes em que, durante um exercício
físico, minha alma coloca diante do meu corpo algum objetivo mais
ambicioso. A alma cobiça, mas o corpo não acompanha. Não porque não
queira, mas porque não pode. Afinal, o corpo parece fácil: ele tem um
assento físico, concreto, visível e verdadeiro; ao passo que a alma é
abstrata, intangível, fugaz e ganha concretude mais quando recusa ou
ilude do que quando acompanha o corpo.
* * * *
Era um corpo velho e sua alma tinha sido dilacerada por mil e uma
memórias e experiências - por muitos sofrimentos advindos da inveja, da
generosidade, da compaixão, do ressentimento, do esforço e da
comiseração. Mas - Deus do céu! - era um corpo impávido na sua beleza e
no seu orgulho de estar vivo. Um corpo que nos abria para o amor e nos
tornava orgulhosos de pertencer àquela casa. Havia uma alma habitando
aquele corpo, sem dúvida. Seu fulgor iluminava-o, dando-lhe um
equilíbrio conquistado. Ali não havia ódio nem ressentimento. Corpo e
alma estavam em paz, mas - eis a surpresa - estavam vivos.
* * * *
Eu sentei ao lado dela, que havia se transformado numa figura de
campo de concentração e extermínio, tal a sua fragilidade física e
mental. Mas o rosto... Ah! O rosto, embora pálido, guardava a face da
mulher amada. Da jovem cujo sorriso abriu o caminho para a felicidade
neste mundo. E, quem sabe, no outro, conforme logo descobrimos com os
nossos experimentos corporais. Porque é o corpo que permite a
peregrinação da alma. A alma é difícil de encontrar. Quantas pessoas sem
alma você já encontrou na sua vida? O Diabo (aquele Canhoto) leva as
almas. Antigamente ele as comprava caro, com moedas de ouro; hoje elas
estão se oferecendo num vasto mercado e valem menos do que um político
blindado.
Deus, por outro lado, quer o corpo que, conforme diz a nossa
esperança, voltará a viver para sempre no dia da ressurreição. Eis uma
imagem amada por um menino canhoto. No dia em que os mortos acordarem do
seu longo sono haverá a reconciliação de todos os dualismos. A vida vai
englobar a morte. Nesse dia glorioso todos vamos nos ver de novo e nos
abraçar enternecidos. Seremos então jovens, fortes, bonitos, puros,
alegres, e sem conflitos, debaixo daquela luz gloriosa que virá de um
céu que não conhecemos. Esse é o dia do encontro com todos os nossos
mortos queridos. A experiência do corpo e com o corpo nos leva para essa
imagem mágica e redentora de todas as nossas dúvidas e sofrimento.
Amém.
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