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quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Sobrevivências


Roberto DaMatta 

Como diz Shakespeare, todos nós somos atores e temos um momento de entrada e um outro de saída num vastíssimo drama para o qual não fomos convidados, mas para o qual contribuímos quase sempre com total inconsciência e com a total impossibilidade de assistir ao seu final. Mas quando saímos da peça, deixamos uma história. Os atores morrem, mas seus papéis sociais são permanentes e a rede da qual fazem parte se vê obrigada a reparar a sua ausência. Se você é pai ou mordomo, sua falta será mais sentida do que se você for um político bandido. Mas mesmo sendo um rufião ou ladrão, alguém vai sentir sua falta, pois como se dizia antigamente: afinal de contas, todo mundo tem mãe! Vai o embusteiro e entra em cena o filho, o amigo ou o irmão.


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Faz uns 18 anos e eu andava com Lívia, minha neta mais velha, no jardim. Estávamos preparados para uma festa de família e as roupas novas e o corpo lavado criavam aquela estranha consciência de nós mesmos, típica dos rituais. Num dado momento, ela diz:
- Vô, quando você morrer, para quem vai ficar esta casa?

Fui possuído por uma imensa felicidade. A inocência da neta anunciava minha morte, mas era a primeira vez na minha vida que era chamado de "avô". O passeio rotineiro para matar o tempo virou um magnífico rito de passagem.
Fui confirmado no papel de avô. Um novo papel para um velho e mau ator, um tanto cansado de ser incapaz de mentir, bajular e elogiar com convicção num país de mentirosos e de puxa-sacos.

Dizem que um dia o parentesco vai acabar, destruído pela inseminação artificial e pelas incubadoras do "Bravo Novo Mundo" pressentido por Aldous Huxley. Mas o papel de avô continua, garante meu coração.

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Um amigo perdeu um filho subitamente e, quase no mesmo momento, eu soube que sua mulher, naquilo que eu testemunhei como sendo um casamento feliz, estava sendo consumida por um desses males insanáveis de nome complicado. Foram-se os dois: o filho e a cara-metade. Ele, de corpo e alma; ela de alma, deixando um corpo cuja visão trás ao marido muita amargura. Mas se os atores saíram do palco, eles retornam constantemente nos seus papéis.

Ontem mesmo o amigo me telefona. "DaMatta - diz ansioso -, recebi uma carta endereçada a meu filho morto. Veio de um grupo de cuteleiros do qual ele fazia parte." O filho, explico, era viajante por profissão e ferreiro amador. Nas horas vagas, fabricava facas elegantes e belos dragões.

Os atores são o pó majestoso sem o qual não sabemos o que é o amor e os instantes maravilhosos do amor que nos ajudam a passar a limpo um mundo sujo. Os papéis são as armaduras que eventualmente usamos com gosto ou desgosto. Aqueles são destinados ao esquecimento; estes ficam à nossa volta e retornam como lembranças, cartas ou dados estatísticos.

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Os novos dados populacionais radiografam um certo Brasil: o Brasil dos números e índices. Alguns falam em mudança - essa nossa obsessão -, outros observam os dramas. Um deles chama minha atenção. Estamos ficando mais velhos e morrem muitos jovens por morte matada. Por uma violência absurda com a qual pacífica e passivamente convivemos. Uma jovem mãe em Pernambuco, diz o Globo, perdeu cinco filhos no espaço de um mês!

Outro dia, reprisei para o meu neto Jerônimo o filme O Resgate do Soldado Ryan. Meu jovem neto achou "irado" a cabeça de praia que reproduz o desembarque na famigerada "Omaha Beach" em 6 de junho de 1944. Eu sempre fico com os olhos molhados quando vejo a mãe dos jovens Ryan recebendo a notícia oficial da morte de mais um dos seus filhos e ao ouvir a carta formal escrita por Abraham Lincoln a uma senhora que na Guerra Civil Americana perdeu quatro filhos. Generais escrevem belas cartas quando perdem soldados. Mães perdem as pernas quando perdem filhos. Eis dois papéis capitais. O do soldado herói sacrificado pela pátria (ou por alguma utopia) e o do mesmo jovem que, primeiro e antes de tudo, é um esteio quebrado como filho de alguma família.

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Ninguém, que eu saiba, escreveu sequer uma carta para essa mulher menina que, mais do que a mãe do soldado Ryan, perdeu não três, mas cinco dos seus filhos para a violência urbana moldada a drogas, soldada a corrupção policial e cimentada pela nossa miserável capacidade de apenas reagir ao que somos.

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Vencemos uma batalha na Rocinha e iremos vencer outras dessas "cabeças de ponte" contra o tráfico de drogas. Parabenizo-me com as autoridades do meu Estado. Mas fica o seguinte: foram-se alguns atores principais - o Nem (eis um nome que por si só é um livro de sociologia brasileira), mas ficam os papéis. Sobretudo o dos consumidores e o dos membros da rede. Tomamos o "território" que revela o seu absurdo perfil de desigualdade. Uma desigualdade complementar e ligada a um estilo de vida aristocrático que permeia o Brasil das arrumadeiras, babás, milícias, porteiros, mordomos e cozinheiras. A Rocinha é uma metáfora (ou seria uma sobrevivência?) das nossas senzalas. É o ponta de um sistema cuja função é fornecer mão de obra barata. A droga é o chamado serviço doméstico, mantenedor de um clientelismo estrutural e estruturante. Pois acabamos com o escravo, mas não liquidamos a escravidão e muito menos os seus senhores e o seu estilo de vida. Percebemos e começamos a corrigir as desigualdades. É um passo capital. Mas a grande questão é instituir a igualdade.

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