José Nêumanne
Cidadãos com cargo de mando em democracias não devem usufruir o benefício da dúvida
Vão muito além das licenciosidades com a regência verbal cometidas no texto da professora Heloísa Ramos no compêndio Por uma Vida Melhor os desafios enfrentados pela “última flor do Lácio, inculta e bela” mercê da novilíngua implantada pelos militantes do Partido dos Trabalhadores (PT) no poder. Ainda não deu para perceber direito, mas o recente escândalo do recorde de velocidade de enriquecimento pessoal e desempenho empresarial que derrubou Antônio Palocci da chefia da Casa Civil exigiu um esforço criativo extraordinário para definir em palavras, ou expressões, e explicar com base em conceitos republicanos nos textos o êxito de Sua Excelência como consultor. Não há verbos disponíveis para dar cabo da frequência com que o ex-poderoso varão foi acusado à exaustão de repetir práticas inconvenientes. Nem adjetivos que possam sintetizar o eterno retorno dele, que certamente embatucaria Heráclito de Éfeso, ao mesmo local do, digamos, “descuido”.
O doutor foi guerrilheiro, mas não há notícia de memoráveis feitos militares em sua juventude. Mais notoriedade ganhou quando foi acusado pelo ex-assessor Rogério Buratti de ter recebido propina mensal de R$ 50 mil da empresa Leão&Leão em troca de favorecimento da mesma em licitações em sua primeira gestão na prefeitura de Ribeirão Preto, de 1992 a 1996. Médico sanitarista de ofício, destacou-se na República como fiador do compromisso do candidato do PT à Presidência da República pela quarta vez consecutiva, em 2002, Luiz Inácio Lula da Silva, com a estabilidade financeira e o rigor fiscal. Guindado à cúpula da campanha vitoriosa e, depois, feito todo-poderoso ministro da Economia no primeiro mandato presidencial do ex-líder metalúrgico, foi apontado como um dos frequentadores de uma mansão alugada para promover festas e outras atividades estranhas à gestão econômica. Negou sua presença, mas caiu no descrédito quando ela foi atestada pelo caseiro Francenildo Santos Costa. A acusação de ilícito aposentou o verbo reincidir para definir o feito. O prefixo re, usado para denotar repetição, já não se adequava à tentativa de desqualificar o depoimento da testemunha, crime contra o mais sagrado direito da cidadania, a igualdade. A cruel lambança valeu-lhe cargo e poder, mas não lhe custou pena alguma.
Os antigos romanos, dos quais os modernos petistas apreciam além da conta o conceito conveniente de que a dúvida sempre beneficia o réu, no caso destes apenas os réus companheiros (aos adversários eles reservam o agravamento da suspeita para a culpa), diziam há 2 mil anos que “errar é humano, mas perseverar no erro é diabólico”. Não passou pela cabeça privilegiada dos varões de Plutarco que uma pessoa honrada viesse a cometer o terceiro erro consecutivo, não por acreditarem no primado da virtude sobre a tentação do pecado, mas por se sentirem protegidos pela instituição sagrada da res publica (coisa pública). De patrício nenhum se admitia que fosse mais diabólico do que o próprio diabo ao se negar a preferir o erro ao acerto mais de uma vez.
Os súditos de Júlio César, de cuja mulher se exigia que parecesse honesta, não bastando sê-lo, não tiveram premonição nem imaginação suficientes para prover os costumes políticos de um brocardo próprio para os maiorais da República lulopetista. Estes reivindicam o benefício da dúvida sem a contrapartida da obrigação de exalar virtude, além de praticá-la, para que ninguém ponha reparo em suas atitudes. A Luís de Camões, fundador da língua que o pregador padre Antônio Vieira ajudou a tornar pátria, com o reconhecimento do poeta Fernando Pessoa, também faltou imaginação para forjar na fornalha do galaico-lusitano um verbo que admitisse o terceiro erro seguido, o pós-reincidir. Já que, convenhamos, não seria bastante usar o prefixo que designa a terceira vez no neologismo tri-incidir, de vez que esse mostrengo esgotaria suas forças retóricas na esponja que o PT, Lula, Dilma e o mercado ansioso pelas portas que o sanitarista lhes abre dando acesso aos subterrâneos palacianos passaram nos três escândalos por ele protagonizados.
Pois, por incrível que pareça, depois de passar quatro anos no doce exílio da Câmara dos Deputados, período em que os conselhos que deu aos barões dos balcões multiplicaram seu patrimônio por 20, o ex-prefeito e ex-czar da economia, temperado na cúpula da eleição vencida, tetraincidiu. Nem os delírios das noites de tempestade ou a saudade da pátria na Goa distante fariam o soldado caolho imaginar a possibilidade de alguém cair tantas vezes e depois mais vezes ainda ser içado de volta à tona.
O vernáculo tem sofrido com os abusos que lhe têm sido impostos pelos lulopetistas e com o esforço de guias geniais dos povos que repetem o mesmo engano para torná-lo um triunfo sobre a opressão da exaustiva necessidade de acertar. Mas muito mais do que a murcha flor latina, aqui se violentam os bons costumes republicanos, renegados e triturados na prática política da barganha amoral e interesseira. Pior do que violar a gramática é chutar o balde da ética e pisar na jaca das boas práticas de gestão.
A saída, a pedido, de Palocci da chefia da Casa Civil evita a corresponsabilidade de Dilma, ao contrário do que imaginava o nefelibata Cândido Vaccarezza, ao renegar o óbvio de que a informação transmitida a ela das suspeitas sobre o importante assessor a tornaria refém do que contra ele se provasse cada dia que passasse a mais como subordinado dela. À presidente da República cabe exercer o poder delegado pelo povo de maneira soberana, mas com a inevitável contrapartida da onerosa responsabilidade partilhada. O desgaste político do protagonista do escândalo fê-la adotar a antiga prática de que qualquer suspeito deve ser afastado de seu posto de mando até provar a própria inocência nos delitos de que é acusado, inversão do conceito do benefício da dúvida que restitui ao cidadão o poder de seu voto.
Jornalista, escritor e editorialista do Jornal da Tarde.
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