José
Nêumanne
Público
tem direito de saber o que faziam 76 agentes da Abin numa investigação
policial
São
coincidentes duas tentativas, em instâncias judiciais diferentes, de ocultar a
atuação de 76 espiões da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) que passaram
por cima da lei e da hierarquia funcional na Operação Satiagraha, na qual a
Polícia Federal (PF) se propôs a investigar acusações contra o gestor de fundos
Daniel Dantas e outros.
O
primeiro movimento desse balé de sombras ocorre no âmbito da Justiça Federal
paulista. Com base em telefonemas gravados pelos citados agentes da Abin
requisitados pelo delegado Protógenes Queiroz, o titular da 7.ª Vara Federal
Criminal, Ali Mazloum, produziu provas da ilegalidade da atuação desses
“arapongas” no inquérito na Polícia Federal. Tais provas incriminam Luiz Roberto
Demarco, criador da “lojinha virtual” do PT usada para arrecadação de fundos da
campanha de Lula para presidente em 1998. Conterrâneo e amigo de longa data de
Luiz Gushiken, coordenador daquela campanha, Demarco tinha sido demitido de uma
diretoria da empresa gerida por Dantas, passando, em seguida, a vender serviços
aos adversários do gestor do Opportunity, entre eles a Telecom Italia.
A
consulta dos textos que reproduzem alguns dos telefonemas gravados permitiu ao
juiz provar intensa comunicação entre Demarco, Protógenes, jornalistas e os
dirigentes da Abin Paulo Lacerda e Paulo Fortunato. Mas habeas corpus impetrado
por estes réus retirou da 7.ª Vara todo o acervo de informações produzido de
forma ilegal por essa associação entre a PF e a Abin e o redistribuiu para o
juiz Toru Yamamoto, da 3.ª Vara. Isso foi conseguido com ajuda do Ministério
Público Federal, que também se empenha em não divulgar as informações sobre o
que tanto conversaram pelo telefone o delegado federal, os chefões da agência de
“inteligência” e Demarco, que, de acordo com o repórter Raimundo Rodrigues
Pereira, no livro O Escândalo Daniel Dantas: Duas Investigações (2010), teria
recebido US$ 7,5 milhões do sócio americano – o Citi – hostil ao ex-patrão, além
de vultosa remuneração de outro sócio hostil, a Telecom Italia, para agenciar a
Polícia Federal.
Em
novembro, Mazloum proibiu Protógenes, deputado federal graças às sobras de votos
do palhaço Tiririca, de exercer cargos públicos e eletivos, alegando que ele
teria recorrido a métodos nocivos ao Estado Democrático de Direito na
investigação. E acusou o réu de se haver aproveitado da notoriedade conseguida
mercê da Operação Satiagraha para se eleger. Reza sua sentença: “o objetivo
eleiçoeiro do acusado Protógenes é indubitável, cabendo assinalar que nos quatro
aparelhos celulares apreendidos em seu poder, por ordem deste Juízo,
verificaram-se nas agendas das respectivas memórias diversos contatos de
políticos, partidos e jornalistas, circunstâncias que evidenciam seu intento
midiático e político.”
O
desembargador fluminense Adilson Vieira Macabu usou o mesmo argumento no voto
que deu na 5.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), na condição de
relator do julgamento de habeas corpus impetrado por Daniel Dantas contra a
forma como a PF conduziu as investigações na Operação Satiagraha, da qual o
gestor de fundos foi o principal réu. A partir do pressuposto genérico de que o
inquérito que deu origem à ação contém vícios que “contaminam” todo o processo,
o voto do relator também associa o espetáculo produzido pelo delegado com sua
posterior campanha eleitoral e sua atuação ostensiva como assessor informal da
candidata petista à Presidência Dilma Rousseff nos debates contra o tucano José
Serra na campanha de 2010.
Macabu
deixou claro, ao relatar o caso, que não se trata de tornar impune mais um caso
rumoroso, de vez que as suspeitas de corrupção e lavagem de dinheiro apuradas
pela PF continuam e deverão ser sempre passíveis de investigação. Convém fazer
tal observação para que não paire no ar nenhuma suspeita de parcialidade: não se
trata de esconder um lado para proteger o outro nem vice-versa. O Estado
Democrático de Direito exige a investigação justa e imparcial dos fatos dentro
do escopo da lei. Mas também não pode compactuar com a flagrante ilegalidade de
um inquérito policial feito com a colaboração irregular da Abin, de cujas
atribuições legais de assessoria à Presidência da República não consta a
participação de seus agentes em investigações que cabem a policiais
federais.
O
ministro Napoleão Nunes Maia Filho acompanhou o relator. Mas, antes de Laurita
Vaz e Jorge Mussi votarem, Gilson Dipp, que conhece o escândalo há três anos,
pediu vista. Em 2008, Felipe Patury publicou na coluna Holofote, da Veja,
encontro de Dipp com o juiz do caso, Fausto de Sanctis. Conforme o colunista, ao
comentar o conflito com o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar
Mendes, de Sanctis “garantiu a Dipp que agiu de boa-fé, mas admite que pode ter
sido ludibriado pelos policiais ou pelo Ministério Público na preparação da
operação”.
O
Judiciário precisa dar um basta no uso de operações policiais como produto a
serviço de interesses privados. Para tanto deve permitir a abertura da caixa
preta da Operação Satiagraha. Mais do que isso: urge que sejam reafirmadas as
bases do Estado de Direito garantindo o cumprimento das leis e a independência
dos magistrados, pois, como denunciou o então presidente do STF Gilmar Mendes em
carta ao ex-ministro da Justiça Tarso Genro, é inaceitável “a tentativa de
estabelecer estrutura de intimidação e atemorização, sobretudo por meio de
sórdidas acusações nos meios de comunicação, com a finalidade de submeter
magistrados aos propósitos de policiais federais desgarrados dos princípios que
regem as nobres funções que lhes são confiadas”. O citado Ali Mazloum também
escreveu, em artigo publicado nesta página no último dia 9: “um juiz que julga
de acordo com o noticiário da TV ou anda afinado com o ‘direito achado nas ruas’
não passa de um tartufo togado.” Ou seja: cabe-lhe a missão nobre e irrecusável
de ser sempre um serviçal vigilante e incorruptível da lei e combater quaisquer
formas de injustiça.
JORNALISTA,
É ESCRITOR E EDITORIALISTA DO ‘JORNAL DA TARDE’
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