Pesquisar conteúdo deste blog

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Intimidade de coluna - ou quando você sabe que está (bem) casado?

Roberto da Matta
Para o Aloysio
A pergunta tem a ver com a humilde instituição do matrimônio, entre nós concebido como uma escolha amorosa monogâmica ou exclusiva. O motivo tem a ver com uma intimidade: esqueci o meu quadragésimo oitavo aniversário de casamento - fiz, valha-me Deus, Bodas de Granito! - no dia 20 do corrente.
Constatado o fato, fui ao encontro da minha turma, todos pertencentes à classe denominada da "melhor idade" por quem não chegou lá e só pode estar querendo nos sacanear. Afinal, entre outras coisas, e como dizia uma velha amiga americana, "a velhice não é pra frescos". Diante dos setentões casados e protegidos pelo Aço, Cristal, Opala, Prata, Pinho, Cedro, Coral, Carvalho e Pérola de suas bodas, questionei: quando uma pessoa sabe que está bem casada?
O Jorginho, que bebe bem e sofre de artrite, soltou: "Sei que estou bem casado pela tesão. Imagine, se isso é possível, que até hoje eu bato um bolão com a Matilda. Não digo que dou coitos homéricos, mas faço amor... Essa Matilda gordalhona e feia, à noite, na cama - disse ele com os olhos misteriosos dos velhos - fica linda!" Já o Silvio sacudiu a cabeça e, trêmulo pelo Parkinson, foi curto e enfático: "Casamento bom dura pelas comidas e pela limpeza da casa!" De um outro lado da mesa, Israel, que é cauteloso no beber e falar, matutou: "O sujeito bem casado constrói. Ama e respeita a esposa, faz filhos, sustenta a casa com seu trabalho, espalha seus genes e nome pelo mundo. Seus descendentes são os frutos do seu bom casamento." E completou, sereno e bíblico, propondo um brinde: "Meu caro amigo, você esqueceu a data, não o casamento. E esqueceu porque seu casório é feito de bom e indestrutível granito. Esse estofo dos sonhos humanos." O grupo baixou a cabeça e ficou tão emocionado quanto eu, pobre cronista, com um casório marcado por pedra.
Meus amigos estavam certos. Casamentos - como dizia um grande antropólogo inglês, E.R. Leach - são feitos de favores sexuais, de serviços domésticos e de capacidade de reprodução. Ou melhor, acasalamento, comida e descendência implicam buscar pessoas e coisas fora de nós. São os apaixonados que inventam o amor ou é o amor que já existia antes que faz a paixão? A comida leva ao sexo (o peixe morre pela boca), a reprodução conduz ao casamento; ambos, à manutenção da casa, realizada por uma mulher que "saiba lavar e cozinhar e que de manhã cedo nos acorde na hora de trabalhar", o famoso e tão decantado modelo Emília, samba de Wilson Batista e Haroldo Lobo, de 1942.
Na biografia de um casório, o casal de amantes que goza, e diz que ama para além do tempo, compensa o lado efêmero e intangível do gozo sensual com juras complementares, pois deseja que seu amor tenha um gosto de eternidade. Por causa disso, o par vai da cama para o altar e, numa cerimônia formal, transforma-se em marido e mulher. No rito matrimonial, a sexualidade é recalcada; salienta-se a obediência às regras da sociedade. Agora, como nubentes legitimados por suas famílias e pelo grupo, realizam um ato com consequências jurídicas, conjugando o amor fugaz ao sal do realismo. Na cama, o amor é ilimitado; no altar solene das bodas, porém, a morte substitui a eternidade do amor erótico; e uma eventual pobreza e a certeza da doença mostram como a viagem que estão prestes a realizar não é tão simples. Não digo que é impossível, mas é trabalhosa e, como tudo que é humano, exige constante paciência e generosa compreensão. Obriga a recomeçar em cada aurora e anoitecer.
Volto à intimidade. Fiz 48 anos de casado e não me lembrei até que uma velha empregada da família telefonou me dando parabéns. O que é o esquecimento? Tento uma resposta: a coisa está tão dentro de você e você tão dentro dela que os limites se acabam. Só temos noção do que somos quando nos confrontamos com o que não somos. Dizem que existem dois tipos de homens casados: o "caixão branco" e o "cabaré de fronteira". O primeiro, recusaria a Marilyn Monroe; o segundo traça quem anda de saia e não é padre ou escocês e mesmo assim dizem que há controvérsias. A maioria, declara o bom senso higienizador, fica entre os dois, esperando a ocasião que levará ao enterro do marido fiel e ao nascimento do malandrão no melhor estilo Quincas Berro d"Água, o rei dos lupanares e senhor do Pelourinho, de um saudosíssimo Jorge Amado. Todos temos caixões e fronteiras.
Tive sorte. Às vezes falhava o lado da casa ou da rotina. Mas o amor permaneceu intacto. Minha mulher também não se lembrou da data. Pela primeira vez, testemunhei esse esquecimento de sua parte. Logo nessa parte da vida - aniversários, festas, presentes e nomes que tanto definem o seu lugar como a eventual tecelã dos elos da presença e da saudade, construídos no coração. Paciência, afinal eu tenho muito do granito dessas bodas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário