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Roberto DaMatta
Estou convencido de que o discurso pelo povo e pelo batido "amor" aos pobres é uma fachada. Falamos em pobres para esconder o nosso viés aristocrático e a nossa crença inabalável de que somos realmente superiores.
Cada partido tem os pobres que merecem. Eis um qualificativo santificado para classificar um conjunto de cidadãos brasileiros como subordinados e inferiores. Numa pesquisa realizada faz algum tempo, encontrei algo contundente. O mundo foi, é e será sempre constituído de ricos e pobres. A pobreza, dizem os informantes que se classificam como pobres, não é um defeito ou um erro, como argumentam as teorias modernas da desigualdade, mas faz parte da vida. É bíblica e natural. Aqui, o pobre surge acoplado ao rico: um não pode ser balizado sem o outro. Posteriormente, essa pesquisa foi confirmada quantitativamente com a colaboração de Carlos Alberto Almeida do Instituto Análise.
Ela revela o eixo hierárquico dentro dos ideais de igualdade que, com o advento da república transitaram do campo religioso (todos são relativamente iguais perante Deus, da Virgem e dos Santos) para o campo cívico-político que declarava uma igualdade de raiz perante a lei neste mundo. Ora, essa é a questão. No "outro mundo", todos pagam, mas lá não há Supremo Tribunal Federal, governo, polícia, partidos políticos, ambições pessoais e mendacidade, exceto na cabeça dos crentes. E os brasileiros são crentes escarrados. Todos acreditam não somente numa justiça divina, pela qual os f.d.p deste mundo pagam pelo que fazem com os inferiores, MAS somente depois da morte, quando o que se demanda num regime democrático e liberal é - eis o duelo de coluna - uma justiça igualitária aqui e agora. Um sistema menos condescendente com quem está no poder e mais igualitário com quem vai aos tribunais exigir compensação moral pelo aviltamento sofrido, como foi o caso do caseiro cujos direitos constitucionais foram violados pela cúpula governamental.
Continuamos do lado das hierarquias que, com a sinceridade das crenças inabaláveis, porque jamais foram discutidas e politizadas, decidem sempre pelo lado de quem está no "poder", "manda", pode e deve mentir ou "controla"; porque pode "dar", "tirar" ou "perseguir" - essas traços característico dos mais fortes (dos que "estão em cima" ou "por cima") - contra os mais fracos. Ou, eis outro lado do duelo, começamos a mudar essa equação?
Longe das disputas, os fracos são "pobres" e "oprimidos", mas quando eles se individualizam e clamam por direitos, passam de cordeiros a ingratos que perderam a sua consciência de lugar porque pretenderam - como o caseiro Francenildo Costa contra o todo-poderoso ministro Antonio Palocci - disputar com o "superior" como um igual. Eis um caso de revoltar o estômago: um conluio de ministros (inclusive com o da Justiça que, sem conflito de interesses, atuou como advogado de Palocci), um poderoso diretor de um dos maiores bancos do País, a Caixa Econômica Federal, toda uma súcia de subordinados que fazem tudo pelos chefes contra um caseiro que tinha uma conta bancária impossível para quem acabava de fazer o mensalão e não podia imaginar que alguém pudesse falar a verdade ou não ter um plano B. Eis o Partido dos Trabalhadores jogando tudo contra um trabalhador, eis a prova de que quem está por cima tudo pode no Brasil.
Num sistema aristocratizado, a igualdade é afronta, renúncia do mundo ou subversão. Como é que esse merdinha ousa colocar-se contra mim? Eu, que tenho biografia e sou membro do partido que mais tem feito pelos pobres e pelos que, no plano de nossa modernidade retrógrada, os representa: os trabalhadores em geral, pois num sistema (desenhado pela escravidão) todo trabalhador é, por definição, pobre e desamparado. Todos precisam de pai ou caudilho. O remédio não prevê a igualdade, mas defensores que irrevogavelmente, como diria o senador Mercadante, os represente de modo absoluto.
Eis o duelo. Quando o pobre "entra" na Justiça e troca a resignação religiosa, base do messianismo de Canudos (e de outros movimentos sociais) e que situava a salvação fora deste mundo (como, aliás, eu menciono em Carnavais, Malandros e Heróis), ele desafia essa justiça divina, trocando-a pelos códigos legais deste mundo. E demandam reparos concretos baseados numa justiça humana: conflituosa, reveladora e falível.
Estamos na base do 5 a 4 para os superiores. Para o Brasil do século 21 onde todos são progressistas, honestos e de esquerda é - valha-me Deus! - um baita avanço!
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