Estamos contaminados. Por micróbios,
vírus, bacilos, mentiras, ciclo imperativo de favores e milhões de micro-organismos que, para nossa
felicidade, o olho e a consciência nao alcançam porque se assim ocorresse, teríamos medo de fazer amor num belo tapete persa e jamais pagaríamos impostos.Sem a ignorância como proteção (ou defesa),
não dormiríamos na nossa cama que convida ao sono dos justos,
liberando nossas mais do que honestas almas para as suas necessárias visitas ao universo ilimitado do inconsciente.
No Brasil, é
fundamental a diferenciação entre o "sujo" (que tende a se espalhar) e o ''limpo" (em guerra perpétua com o seu oposto que lhe
dá significado). Ao lado das oposições entre "homem" e "mulher"- que
estão aquém e além dos nossos aparelhos genitais - e entre "velho" e "jovem", que relativamente escapam da idade biológica, essas diferenciações são aprendidas em tenra idade.
Numa pesquisa
que realizei há dez anos, descobri
como sujeira e limpeza eram cruciais, embora pouco mencionadas pelos nossos "entendidos em Brasil".
Crianças
de 4 anos de idade tinham plena consciência de quando estavam
sujas ou limpas.
Somos todos tão intolerantes com o sujo quanto com as divisões aparentemente hiperestabelecidas de gênero, idade e etnia.
Um dos pontos
mais sérios de divisões cósmicas e a sua capacidade de contaminação e criminalização.
Se voce "andar" com pessoas de categorias alvo de
preconceito, corre o risco
de ser contaminado. No estrangeiro, ou ''lá fora",
quando brasileiros se reúnem para comer feijoada,
ouvir samba, tomar uma caipirinha
e falar mal dos
seus anfitriões, um ponto remarcado é o cheiro
e a sujeira. Os franceses são elegantes, mas não tomam banho;
Os ingleses nao usam desodorante, Os alemães são azedos
e os americanos não lavam as mãos depois
de "ir ao banheiro". Nós somos pobres,
mas limpos e honestos...Cuidar do corpo e, sobretudo, "ter um bom cheiro"é um importante sintoma
de limpeza.
Se as ambiguidades de gênero e de etnia promovem preconceito, acusações e fobia, em
certas circunstâncias, contaminam; a oposição entre o sujo e
o limpo opera de modo imediato e sutil.
Num rotineiro
lanche de domingo, em casa de parentes,
um amigo passou
com a mão um pedaço de
pão a um cunhado. A surpreendente recusa veio na forma de uma rude desculpa:
"Não sei onde você botou sua mão!", ouviu daquele que gentilmente lhe passava o pão. Os indianos se horrorizavam quando os ingleses construíram banheiros públicos nas suas estações ferroviárias: como usar papel para limpar-se? A água e a mão esquerda seria o modo exclusivo para realizar
tal ritual de pureza. Um intelectual americano
que visitava o Brasil foi devidamente ensinado
a tomar banhos e a trocar de camisa diariamente. Na minha pesquisa, há casos de mulheres que recusaram namorados
estrangeiros quando viram suas cuecas,
e de homens brasileiros que tiveram crises de impotência com o cheiro
emanado das partes intimas das moças com
as quais pretendiam amar.
A sujeira - na forma de manchas e, sobretudo, de fedor
ou mau cheiro - pode contaminar
todo um ambiente,
empesteando-o. Urn jovem
antropologista de passagem
por Paris foi convidado a comer
urn prato tradicional da densa culinária francesa
num restaurante - acho que foi no Chez Marcel. 0 anfitrião ordenou dois andoulliettes: salsichas maturadas de tripa de porco com um recheio inconfessável. A aparência atraía,
mas quando o cheiro
do prato entrou sem licença pelo meu nariz, senti que estava para comer urn fumegante cagalhão. 0 fedor contaminava o prato.
Sujo e sujeira sao categorias sociais
fortes no Brasil. Exigem banho ou algum outro ato purificador.
"Fazer uma sujeira" define escândalos
e, no limite, roubos inconcebíveis cornetidos por ex-heróis nacionais.Se o arnbiente fede mal quando
há uma contaminação por um mísero,
mas potente,
peixe podre ou um pum fedorento, imagine quando ele é fabricado sistematicamente por urn govemo.
Aliás, em política,
o podre é a soma de mendacidade com incompetência.
*
PS:A democracia, queridos
leitores, contamina.
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