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domingo, 8 de novembro de 2015

Com a pena na mão




Roberto DaMatta

Era um bom aluno e escrevia sua tese de mestrado sobre a cosmologia das tribos das “terras baixas” da América do Sul. Como se sabe, os antropologistas que estudam tribos estão sempre se dividindo em tribos. Há os que estudam os povos das “terras altas” e os das “baixas”, como era o caso do Sinfrônio. Descobri as dificuldades do mestrando no canto reservado a impressora do departamento quando ele falou dos seus prazos esgotados, das leituras obrigatórias e intermináveis e – maldição! – que não conseguia escrever uma só linha. Eu sabia que ele precisava ler mais uns quatro ou cinco ensaios sobre o tema de sua pesquisa, mas preferi o silêncio. Meus colegas tribalizados, entretanto, sugeriam-lhe listas de obras. Não demorei em saber que o seu orientador de tese era quem mais o desorientava.
“Estou numa confusão”, disse-me, ao que adicionou um enigmático “quanto mais agora”.
“Quanto mais agora, o quê?”, perguntei penalizado.
“Tragédia! Apaixonei-me pela filha de um jornalista famoso e zangado. Fugi com ela para Mar del Plata e lá ela jogou tudo fora em formidáveis cassinos.”
“Argentina? Lugar do timbre delirante da prata?”
“Exatamente. Ela jogava como uma louca. Eu a idolatrava e ela queimava toda a verba da minha pesquisa. Acabei perdendo a bolsa do CNE.”
“A do Conselho Nacional de Estudos? Não pode ser.”
“Como não solicitei prolongamento porque ninguém me avisou, tomei muito dinheiro emprestado. Quanto mais eu afundava, mais ela jogava usando suas maravilhosas mãos para o amor e para a pilhas de fichas e cartas que iam e viam como na história do Stefan Zweig. Com os prazos esgotados e a bolsa negada, desisti. Voltei de Mar del Plata – mar de sangue – e ontem mesmo tentei matá-la depois de um surto psicótico do qual me recupero.”
“Mas quem é essa moça? Quem é?”
“Eurídice!”, respondeu Sinfrônio.
“Eurídice!”, ecoou um louco Gumercindo Tavares que, no sonho que acabei de contar, surgia dentro do meu Sinfrônio misturado com o famoso monologo teatral,As Mãos de Eurídice, de 1950, escrito por um olvidado Pedro Bloch.
*
Numa Juiz de Fora de um Affonso Romano de Sant’Anna que ainda não era o ARS célebre da vida intelectual brasileira, meus pais – Renato e Lulita, a pianista que virou mãe; e o juiz de paz que virou fiscal do consumo – me levaram para ver a peça de Pedro Bloch no teatro Glória e eu jamais deixei de associar a experiência do teatro com um impressionante Rodolfo Mayer que entrava em cena pelo lado da plateia e não pelo palco narrando um amor amado, perdido e desgraçado, expresso nas fabulosas mãos de Eurídice – a ninfa que levou tanto Orfeu quanto Gumercindo para a morte.
*
Na lógica amorosa do amor, o maior amor deve ser o amor perdido e cantado numa linhagem poética que vai dos “lied” de Schubert, as baladas de Gershwin, Pixinguinha, Jobim, Vinicius, Bororó, Ary Barroso, Caymmi, Lyra, e tantos outros, os quais – eis o ponto distintivo de Cole Portar – levaram a paixão como ela (e a vida) deve ser levada: como apenas “one of those things”...
Estamos todos presos ao nosso próprio e inexorável palco no qual entramos sem teste e solicitação e saímos sem saber. A contribuição de Cole Porter, que viveu numa América proibida aos negros e homossexuais, foi a sugestão ferina de transformar cantando o chumbo em pena. Convenhamos que tal atitude é uma reversão hierárquica fundamental. Parece cinismo, mas é a arte de trocar o choro pelo riso. As coisas acontecem... Contradições podem ser crimes, mas não podemos deixar de pensar pelo avesso. É preciso tentar compreender o inimigo, o “desviante”, o selvagem e o doente em suas razões – o que não significa segui-los.
Podemos rir das normas com um riso sério, que promove o saudável distanciamento do velho hábito de comer o próprio rabo. Penso que um mestre da comédia como Martins Pena estaria em linha com Porter e, ambos, com Robert Browning, quando diz:
“O nosso interesse está na margem perigosa das coisas. O ladrão honesto, o homicida compassivo.
O ateu supersticioso.
A mulher de reputação duvidosa, que ama e salva sua alma em novos livros franceses.
Nós ficamos observando, enquanto eles se mantém em equilíbrio,
Seguindo a vertiginosa linha intermediária.”
Devo essas penalidades à peça O Pena Carioca, que vi sorrindo na semana passada graças à generosidade de Maria Clara Parente, da boa intriga de minha amada neta Serena, do Daniel e do Tiago Herz, e dos seus formidáveis atores. E, se mais não escrevo, é porque não tenho espaço. Mas assistam ao espetáculo para ver como as leis também produzem comédias.

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