José
Nêumanne
O que esses
ídolos da MPB exigem é privilégio de furar a fila da longa e lenta espera por
justiça
“As aparências
enganam aos que odeiam e aos que amam.” O verso de Sérgio Natureza, musicado por
Tunai, fez sucesso na voz de Elis Regina, reconhecida como a maior cantora
brasileira de todos os tempos, mas, ainda assim, controvertida. Agora a frase
virou uma profecia confirmada. A personalidade da estrela era tão forte e
polêmica que quando se casou com Ronaldo Bôscoli o irreverente Carlos Imperial
ironizou: “Bem feito pros dois”. Desse casamento nasceu João Marcello, que
adotou uma posição definida e lúcida contra a censura prévia que ídolos da
Música Popular Brasileira (MPB) querem impor ao submeterem as próprias
biografias ao crivo deles. Como os irmãos Maria Rita e Pedro, João Marcello
jamais criou obstáculos à publicação de biografias da mãe por saber que fazê-lo
seria trair sua melhor herança: o amor à liberdade.
Já Chico Buarque
de Holanda é uma unanimidade nacional, como definiu Millôr Fernandes. Mas o
símbolo da luta contra a censura na ditadura militar aderiu ao movimento Procure
Saber, que luta para manter o dispositivo adicionado ao Código Civil em 2002 que
submete biografias à prévia autorização de biografados ou herdeiros. Em artigo
no Globo, ele acusou o autor da biografia de Roberto Carlos, proibida a
pedido deste, Paulo César de Araújo, de ter usado depoimento que ele não teria
dado sobre o biografado. Depois da divulgação da conversa dos dois na internet,
desculpou-se, mas voltou a mentir, ao inventar que o Última Hora paulista
prestara serviços a “esquadrões da morte”. Tal mancha na história do jornal é
tão fictícia quanto o Pedro Pedreiro da canção do acusador. Nos anos 70, o
diário teve entre seus colunistas o mais censurado dramaturgo do Brasil à época,
Plínio Marcos, e chegou a ser dirigido por seu fundador, Samuel Wainer. E o
filho do historiador Sérgio Buarque de Holanda, autor de Raízes do
Brasil, como lembrou a irmã Ana, ainda cuspiu na memória do
pai.
Provado que as
aparências enganam, convém acrescentar que ninguém deve julgar por elas. Por
exemplo, o movimento liderado por Paula Lavigne, ex-mulher de Caetano Veloso,
não deveria chamar-se Procure Saber, mas, sim, Não queira nem saber. E ao
contrário do que asseguram seus protagonistas - Caetano Veloso, Gilberto Gil,
Djavan, Marília Pera e outros - não luta por uma garantia legal, já assegurada
em nosso Estado Democrático de Direito a qualquer cidadão: o direito à
privacidade. Mas por um privilégio a ser gozado apenas pelas celebridades: o
direito de furar a longa fila de quem recorre à nossa Justiça, que não é cega,
mas de uma morosidade que beira a paralisia.
A manutenção do
artigo que submete a publicação de biografias à autorização de biografados ou
seus herdeiros viola o princípio democrático basilar do direito à liberdade de
informação, expressão e opinião. E sua extinção não interferirá na legislação
que já protege a reputação dos cidadãos e estabelece penas e multas a quem
divulgue mentiras, calúnias, injúrias ou difamações contra alguém. A supressão
do artigo que destoa das instituições democráticas vigentes, pois, não porá em
risco a reputação de ninguém. Apenas negará aos famosos o privilégio de
proibirem a publicação de livros sobre suas vidas que registrem alguma
informação que não queiram que seja divulgada.
O patrono dos
“neocensores”, Roberto Carlos, quer manter em segredo o acidente ferroviário que
lhe decepou a perna, bastante conhecido, como antes proibiu regravações de
Quero que vá tudo pro inferno. Mas nem o espírito de censor, adicionado
às manias de seu transtorno obsessivo compulsivo (TOC), como a de não
cumprimentar quem vista roupa marrom, explica o fato de ele ter vetado a
publicação de tese sobre a moda na Jovem Guarda, que considera parte de seu
patrimônio pessoal.
A fortuna de
Roberto e Erasmo Carlos foi construída mercê da fama obtida pela imensa
receptividade do público pagante a sua obra musical. Nada mais justo! Só que
celebridade exige a contrapartida da curiosidade da plateia, assim como a vida
pública dos dirigentes da República cerceia algumas comodidades que os cidadãos
anônimos gozam. A vida dessa elite faz parte da história da sociedade. O melhor
que alguém que não queira submeter-se a esse incômodo pode fazer é recolher-se
ao anonimato, trancando-se a sete chaves. Isso não quer dizer que algum biógrafo
irresponsável possa mentir sobre qualquer episódio da vida de uma pessoa só
porque ela é muito conhecida.
É natural, mas
não é correto, que quem desperta interesse tente resguardar-se, como alguns
venerados artistas reivindicam, ou exigir licença para delinquir, com a qual
sonham alguns maus políticos. A condenação dos mensaleiros pelo Supremo Tribunal
Federal (STF) puniu a corrupção e deixou claro para esses mandatários que eles
têm, como o cidadão comum, a obrigação de cumprir as leis que debatem e aprovam.
O mesmo princípio da igualdade de todos perante a lei é ferido pelo pleito do
grupo de famosos que querem censurar previamente suas
biografias.
Os votos de seis
ministros do STF aceitando embargos infringentes de alguns réus do mensalão põem
em debate outro obstáculo à isonomia: o limitado acesso à Justiça, em geral, e
ao Supremo, em particular. Os ex-censurados que viraram censores prévios
pretendem o mesmo que José Genoino e José Dirceu reivindicam: a garantia de um
privilégio hediondo como prêmio a suas biografias de respeito. Não foi à toa que
Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, advogado de alguns mensaleiros,
publicou artigo em defesa dos ídolos da MPB. Mas estes deveriam era seguir o
sensato exemplo de João Marcello Bôscoli: ao se pretenderem censores prévios da
publicação de suas biografias, terminam manchando-as de forma
indelével.
Jornalista,
poeta e escritor
(Publicado na
Pág. A2 do Estado de S. Paulo de 22 de outubro de
2013)
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