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sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Manifestações e passeatas



ROBERTO DAMATTA - O Estado de S.Paulo


O repórter fuzilou: professor, como explicar essas manifestações?
Não é fácil ser professor e cronista. O papel de cronista leva para uma querida reclusão, para uma ampla liberdade interior. O de professor tem uma face inevitavelmente resignada, coercitiva e pública. O resultado é que o meu pobre eu, que melhor do que ninguém entende a sua imensa ignorância, brigava com o meu senso de responsabilidade pública. Esta, queria colaborar; aquele, conhecedor dos seus limites, só queria dizer o que ninguém disse: que eu não sei, que ninguém sabe ou sabia...
Que falar do mundo é um palpitar de ignorâncias e aproximações. Que o futuro a Deus pertence e que o futuro, como ensinava Santo Agostinho, é o presente prolongado. A Certeza, essa deusa em cujo altar depositamos flores (e grana), é tão difícil quanto a Verdade. A "notícia" é justamente o imprevisto que desmancha planos e, supomos, aponta caminhos. A vida é cheia de surpresas. Projetos perfeitos para melhorar o Brasil produziram efeitos contraditórios. A esquerda, como disse o próprio Lula, não estava velha? E a popularidade de Dilma não subiu? E os fatos envolvendo o PSDB? Afinal, é tudo farinha do mesmo saco?
Nossas ações têm consequências imprevistas. O bem pode gerar o mal e até mesmo a má-fé pode engendrar o bem. Aliás, o ditado - há males que vêm para o bem - diz muito quando é lido pelo avesso: há bens que vêm para o mal. Tudo o que fazemos, leitores, deixa rastro, por mais calculistas, delicados ou cautelosos que possamos ser.
***
Então, professor, como explicar o atual momento? Pensei imediatamente na dificuldade que tem o pensamento moderno (que privilegia o indivíduo) para entender algum movimento coletivo (no qual o ator é uma coletividade). A soma não nos intriga, mas a interligação nos deixa apalermados. Curioso como a tecnologia trás [traz] de volta o mundo como um todo. Agora mesmo, Obama discute um modo de disciplinar a espionagem global que, do ponto de vista dos Estados Unidos, faz parte de sua patriótica defesa. Uma tecnologia específica nos obriga a tomar consciência de suas implicações abusivas e relembra a totalidade da qual somos parte.
Lembrei-me do Lévi-Strauss de Tristes Trópicos (de 1955) quando, com aquela sua excepcional visão distanciada que transforma tudo o que é atual e presente em algo minúsculo e relativo, afirma que todo avanço tecnológico implica um óbvio ganho, mas igualmente uma perda. Freud, adverte em 1930, em O Mal-estar na Civilização, como é um engano pensar que o poder sobre a natureza - esse apanágio de nossa "civilização" - seja visto como o centro da felicidade. Falamos com um filho que está em outra cidade pelo telefone, ou lemos a mensagem de um amigo querido que fez uma longa viagem. Curamos igualmente muitas doenças e prolongamos a vida. Mas isso não prova um estado permanente de felicidade. Muito pelo contrário, tais exemplos não seriam a prova de um "prazer barato"? Como, numa noite fria, colocar a perna para fora do cobertor e depois cobri-la novamente? Porque, acrescenta Freud, se jamais tivéssemos saído da aldeia, nossos filhos e amigos estariam ao nosso lado e toda essa tecnologia seria inútil. Ademais, complementa, "de que nos vale uma vida mais longa se ela for penosa, pobre em alegrias e tão plena de dores que só poderemos saudar a morte como uma redenção?".
Em seguida a essas observações realistas (e proféticas) mais do que pessimistas, como o próprio Freud as classifica, ele chega a um ponto essencial: não temos o direito de considerar que um estado subjetivo, como a nossa felicidade, seja imposto a outras pessoas, épocas e coletividades. Mudar de ponto de vista e relativizar é uma sabedoria e uma cambalhota.
O controle da natureza não justifica o controle sobre outras formas de vida.
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Sou visitado por minhas netas, jovens, animadas, lindas como uma praia de Janeiro e cada qual abastecida de um celular. Amorosas, elas conversam com o avô, mas nenhuma deixa de teclar o seu aparelho, que é mais uma prótese a provar a nossa sempre carente humanidade. Contador inveterado de histórias, lembro de um evento ocorrido quando era menino e vi meu pai feliz tirando de sua pasta maços de dinheiro cheiroso - uma bolada! - a qual correspondia a um aumento de salário pago retroativamente. Somos reativos: só agimos depois das tragédias e dos escândalos; mas somos também retroativos porque, dependendo da categoria e da pessoa, o "governo" paga direitos passados. O "legal" é tão generoso como um beijo na boca...
Logo percebi que as netas ouviam pela metade. Claro: cada uma delas estava enredada, falando ao mesmo tempo com outras pessoas as quais eram muito mais (ou tão) reais quanto eu com meu corpo e minhas fábulas infelizmente permanentes.
Entendi que minhas netas não estavam sós. Cada qual era uma multidão. Uma delas, inclusive, manifestou que contava o que eu contava para mais dez amigas - na hora e no ato. Eu pensei estar num encontro de família e estava, sem sair de casa, numa passeata.

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