José Nêumanne
Contra as
profecias que enterravam o ritmo, homens fazem justiça com o próprio
acordeom
No fim do século
passado, rolou o maior estresse na música regional nordestina. Parte dele vinha
de Fortaleza, onde o produtor Manuel Gurgel inventou uma nova fórmula de forró:
conjuntos em que predominavam instrumentos eletrônicos e muita dança sensual de
mulheres bonitas e de corpo bem torneado, com nomes de origem sertaneja (Mastruz
com leite) ou insinuação sexual (Calcinha preta) eram compostos por músicos
contratados pelo produtor. Este corria as praças exercitando, segundo seus
desafetos, um velho costume herdado do Sudeste: o jabaculê, ou jabá: a compra de
execução de discos em rádio. O gênero foi chamado pejorativamente de forró de
plástico. A outra ponta do desafio à autenticidade do ritmo inventado por Luiz
Gonzaga vinha de São Paulo, onde uma banda, a Falamansa, incendiou os salões de
baile da Pauliceia Desvairada com um hit de arromba, Rindo à
Toa.
Na virada do
século, um gênio como o paraibano Antônio Barros, com mais de 700 sucessos
juninos, entre os quais dois arrasa-quarteirões nacionais, Homem com Agá
e Por Debaixo dos Panos, com Ney Matogrosso, foi obrigado a abrir shows
no interior nordestino para as bandas de Gurgel. E instrumentistas do quilate de
Jorge de Altinho e Oswaldinho do Acordeom, filho de Pedro Sertanejo, baiano que
inventou as salas de dança do forró paulistano, e compadre de Gonzaga, passaram
a ser apresentados como atrações nos shows da garotada urbana que fazia parte do
chamado forró universitário (referência ao festival do Mackenzie, onde Falamansa
surgiu).
Ao assumir a
secretaria de Cultura do governo da Paraíba, Chico César, sertanejo de Catolé do
Rocha, empunhou a bandeira do forró de pé de serra, com base em sanfona,
triângulo e zabumba, formação adotada pelo rei do baião, que, em vez de ônibus,
se deslocava numa Rural com seus acompanhantes interior adentro. Mas a reação
soou frágil, de vez que o forró nada tem de autêntico: trata-se de uma invenção
do grande marqueteiro que foi o gênio que fez de sua Asa Branca o hino
informal do Nordeste.
Pouco mais de
dez anos depois, ficou provado que as ondas se desmancham na areia e o mar
continua. Gurgel mudou de ramo, o forró universitário não tem mais o impacto dos
velhos tempos e o trio sanfona-zabumba-triângulo volta ao topo do pódio. Dois
gênios da música regional nordestina – Antônio Barros e Genival Lacerda, seu
Vavá –, da turma que foi acolhida por Gonzaga em sua casa em Lins de
Vasconcelos, no Rio, são os remanescentes vivos do trio que Rilávia Cardoso e
Ajalmar Maia, os dois maiores dançarinos de forró do maior São João do Mundo, em
Campina Grande, Paraíba, homenageiam no Prêmio Luiz Gonzaga, grande festa da
música regional, deste ano. O terceiro é o maestro Sivuca, que viajou para o
além antes do combinado, como costuma dizer seu amigo Rolando
Boldrin.
E Monteiro,
berço de intelectuais como o crítico de cinema e filósofo católico José Rafael
de Menezes, ministros do Supremo como Djacir Falcão e Rafael Mayer, e um dos
maiores repentistas da história da poesia popular nordestina, Pinto do Monteiro,
está presente nesta ressurreição na pessoa de dois sanfoneiros. Sanfoneiro desde
os 7 anos, no circuito junino desde 1977, devoto de Gonzaga e Dominguinhos,
Flávio José percorre o País com sua voz forte e meiga, apropriada para o forró
romântico de sucessos como Caboclo Sonhador ou impregnado de costumes
matutos como Tareco e Mariola. No ano passado, homenageou o centenário do
fundador de sua profissão com um CD só de obras de seu
Lua.
Dejinha de
Monteiro, que adota a cidade natal no nome artístico, é também um sanfoneiro de
primeira linha, na escola de Flávio José. Seu repertório é fundado em sucessos
que falam de relações destruídas, amores findos e da desilusão do descompasso
entre os casais – um sanfoneiro do século 21.
Em Campina
Grande, Amazan continua fabricando suas sanfonas, enquanto os conterrâneos José
e Luizinho Calixto mantêm a tradição da velho instrumento camponês de Sivuca, o
fole de oito baixos: Zé Calixto no subúrbio do Rio, onde conviveu com Gonzaga, e
o irmão ensinando a afinação quase impossível do instrumento no interior do
Nordeste. E quem foi mesmo que disse que o forró morreu?
José Nêumanne é
jornalista, poeta e escritor
(Publicado no Caderno 2 +
Música do Estado de S. Paulo de sábado 23 de março de
2013)
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