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sábado, 23 de março de 2013

E o forró não morreu




José Nêumanne

Contra as profecias que enterravam o ritmo, homens fazem justiça com o próprio acordeom

No fim do século passado, rolou o maior estresse na música regional nordestina. Parte dele vinha de Fortaleza, onde o produtor Manuel Gurgel inventou uma nova fórmula de forró: conjuntos em que predominavam instrumentos eletrônicos e muita dança sensual de mulheres bonitas e de corpo bem torneado, com nomes de origem sertaneja (Mastruz com leite) ou insinuação sexual (Calcinha preta) eram compostos por músicos contratados pelo produtor. Este corria as praças exercitando, segundo seus desafetos, um velho costume herdado do Sudeste: o jabaculê, ou jabá: a compra de execução de discos em rádio. O gênero foi chamado pejorativamente de forró de plástico. A outra ponta do desafio à autenticidade do ritmo inventado por Luiz Gonzaga vinha de São Paulo, onde uma banda, a Falamansa, incendiou os salões de baile da Pauliceia Desvairada com um hit de arromba, Rindo à Toa.

Na virada do século, um gênio como o paraibano Antônio Barros, com mais de 700 sucessos juninos, entre os quais dois arrasa-quarteirões nacionais, Homem com Agá e Por Debaixo dos Panos, com Ney Matogrosso, foi obrigado a abrir shows no interior nordestino para as bandas de Gurgel. E instrumentistas do quilate de Jorge de Altinho e Oswaldinho do Acordeom, filho de Pedro Sertanejo, baiano que inventou as salas de dança do forró paulistano, e compadre de Gonzaga, passaram a ser apresentados como atrações nos shows da garotada urbana que fazia parte do chamado forró universitário (referência ao festival do Mackenzie, onde Falamansa surgiu).

Ao assumir a secretaria de Cultura do governo da Paraíba, Chico César, sertanejo de Catolé do Rocha, empunhou a bandeira do forró de pé de serra, com base em sanfona, triângulo e zabumba, formação adotada pelo rei do baião, que, em vez de ônibus, se deslocava numa Rural com seus acompanhantes interior adentro. Mas a reação soou frágil, de vez que o forró nada tem de autêntico: trata-se de uma invenção do grande marqueteiro que foi o gênio que fez de sua Asa Branca o hino informal do Nordeste.

Pouco mais de dez anos depois, ficou provado que as ondas se desmancham na areia e o mar continua. Gurgel mudou de ramo, o forró universitário não tem mais o impacto dos velhos tempos e o trio sanfona-zabumba-triângulo volta ao topo do pódio. Dois gênios da música regional nordestina – Antônio Barros e Genival Lacerda, seu Vavá –, da turma que foi acolhida por Gonzaga em sua casa em Lins de Vasconcelos, no Rio, são os remanescentes vivos do trio que Rilávia Cardoso e Ajalmar Maia, os dois maiores dançarinos de forró do maior São João do Mundo, em Campina Grande, Paraíba, homenageiam no Prêmio Luiz Gonzaga, grande festa da música regional, deste ano. O terceiro é o maestro Sivuca, que viajou para o além antes do combinado, como costuma dizer seu amigo Rolando Boldrin.

E Monteiro, berço de intelectuais como o crítico de cinema e filósofo católico José Rafael de Menezes, ministros do Supremo como Djacir Falcão e Rafael Mayer, e um dos maiores repentistas da história da poesia popular nordestina, Pinto do Monteiro, está presente nesta ressurreição na pessoa de dois sanfoneiros. Sanfoneiro desde os 7 anos, no circuito junino desde 1977, devoto de Gonzaga e Dominguinhos, Flávio José percorre o País com sua voz forte e meiga, apropriada para o forró romântico de sucessos como Caboclo Sonhador ou impregnado de costumes matutos como Tareco e Mariola. No ano passado, homenageou o centenário do fundador de sua profissão com um CD só de obras de seu Lua.

Dejinha de Monteiro, que adota a cidade natal no nome artístico, é também um sanfoneiro de primeira linha, na escola de Flávio José. Seu repertório é fundado em sucessos que falam de relações destruídas, amores findos e da desilusão do descompasso entre os casais – um sanfoneiro do século 21.

Em Campina Grande, Amazan continua fabricando suas sanfonas, enquanto os conterrâneos José e Luizinho Calixto mantêm a tradição da velho instrumento camponês de Sivuca, o fole de oito baixos: Zé Calixto no subúrbio do Rio, onde conviveu com Gonzaga, e o irmão ensinando a afinação quase impossível do instrumento no interior do Nordeste. E quem foi mesmo que disse que o forró morreu?

José Nêumanne é jornalista, poeta e escritor

(Publicado no Caderno 2 + Música do Estado de S. Paulo de sábado 23 de março de 2013)

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